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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

BABEL DE SIÃO - Por Luis de Camões

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Sôbolos rios que vão 
Por Babilônia, me achei, 
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião, 
E quanto nela passei. 
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Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado, 
E tudo bem comparado; 
Babilônia, ao mal presente, 
Sião, ao tempo passado.
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Ali lembranças contentes
Na alma se representam; 
E minhas coisas ausentes
Se fizeram tão presentes, 
Como se nunca passaram. 
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Ali, depois de acordado, 
C'o rosto banhado em água
Deste sonho imaginado, 
Vi que todo o bem passado 
Não é gosto, mas é mágoa.
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E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças, 
E as mudanças dos anos, 
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
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Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura; 
O mal quão depressa vem; 
E quão triste estado tem 
Quem se fia da ventura.
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Vi aquilo que mais val 
Que então se estende melhor
Quando mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal, 
E ao mal muito pior. 
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E vi com muito trabalho 
Comprar arrependimento; 
Vi nenhum contentamento; 
E vejo-me a mim, que espalho 
Tristes palavras ao vento.
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Bem são rios estas águas
Com que banho este papel; 
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas
E confusão de Babel.
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Como homem que, por exemplo
Dos trances em que se achou, 
Depois que a guerra deixou, 
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;
Assim depois que assentei 
Que tudo a tempo gastava, 
Da tristeza que tomei, 
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava. 
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Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada, 
Dizendo: "Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo
A memória consagrada. 
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Flauta minha, que tangendo
Os montes fazíeis vir
Para onde estáveis, correndo, 
E as águas que iam descendo, 
Tornavam logo a subir, 
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Jamais vos não ouvirão
Os tigres que se amansavam; 
E as ovelhas que pastavam
Das ervas se fartarão, 
Que por vos ouvir deixavam. 
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Já não fareis docemente 
Em rosas tornar abrolhos;
Na ribeira florescente; 
Nem poreis freio à corrente, 
E mais se for dos meus olhos.
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Não movereis a espessura, 
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura; 
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
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Ficareis oferecida
À fama que sempre vela, 
Flauta de mim tão querida; 
Porque mudando-se a vida, 
Se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade 
Prazeres acomodados; 
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade 
Aqueles gostos passados. 
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Um gosto, que hoje se alcança, 
Amanhã já não o vejo;
assim nos traz a mudança
D'esperança em esperança, 
E de desejo em desejo.
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Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte? 
Fraqueza da humana sorte, 
Que quando da vida passa
Está recitando a morte! 
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Mas deixar nesta espessura  
O canto da mocidade - 
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura!
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Que idade, tempo, e espanto
De ver quão ligeiro passe, 
Nunca em mim puderam tanto 
Que, posto que deixo o canto. 
A causa dele deixasse. 
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Mas em tristezas e nojos, 
Em gosto e contentamento, 
Por sol, por neve, por vento, 
Tendre presente à los ojos
Por quien muero tan contento. 
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Órgãos e flauta deixava, 
Despojo meu tão querido, 
No salgueiro que ali estava, 
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido. 
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Mas lembranças de afeição
Que ali cativo me tinha, 
Me perguntaram então, 
Que era da música minha
Que eu cantava em Sião?
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Que foi daquele cantar, 
Das gentes tão celebrado? 
Porque o deixava usar, 
Pois sempre ajuda passar
Qualquer trabalho passado?
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Canta caminhante ledo
No caminho trabalhoso
Por entre espesso arvoredo; 
E de noite o tenebroso
Cantando refreia o medo.
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canta o preso docemente, 
Os duros grilhões tocando;
canta o segador contente; 
E o trabalhador, cantando, 
O trabalho menos sente. 
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Eu que estas coisas senti
Na alma de mágoas tão cheia, 
Como dirá (respondi)
Quem alheio está de sia
Doce canto em terra alheia? 
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Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito? 
Porque se, quem trabalhar
canta por menos cansar, 
Eu só descansos enjeito. 
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Que não parece razão,  
Nem seria coisa idônea, 
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião. 
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Que quando a muita graveza
Da saudade quebrante
Esta vital fortaleza, 
Antes morra de tristeza
Que por abrandá-la cante.
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Que se o fino pensamento 
Só na tristeza consiste, 
Não tenho medo ao tormento;
Que morrer de puro triste, 
?Que maior contentamento? 
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Nem na frauta cantarei 
O que passo e passei já, 
Nem menos o escreverei; 
Porque a pena cansará, 
E eu não descansarei.
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Que se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha, 
E se Amor assim o ordena, 
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha. 
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Porém, se para assentar
O que sente o coração, 
A pena já me cansar, 
Não canse para voar
A memória em Sião! 
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Terra bem-aventurada, 
Se por algum movimento
D'alma me fores tirada, 
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento! 
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A pena deste desterro, 
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro, 
Essa nunca seja ouvida, 
Em castigo de meu erro!
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E se eu cantar quiser, 
Em Babilônia sujeito, 
Hierusalem, sem te ver, 
A voz, quando a mover, 
Se me congele no peito! 
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A minha língua se apague
Às fauces, pois te perdi,
Se, enquanto viver assim, 
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti.
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Mas oh tu, terra de glória, 
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência? 
Não me lembras na memória, 
Senão na reminiscência; 
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Que a alma é taboa rasa, 
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina
Que voa da própria casa, 
E sobre à pátria divina.
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Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do céu, 
Daquela santa cidade.
Donde esta alma descendeu. 
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E aquela humana figura, 
Que cá me pode alterar, 
Não é quem se ha de buscar; 
É raio da formosura
Que só se deve d'amar.
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Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita, 
Não do sol, nem da candeia, 
É sombra daquela ideia, 
Que em Deus está mais perfeita. 
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E os que cá me cativaram, 
São poderosos afetos
Que os corações tem sujeitos; 
Sofistas, que me ensinaram
Maus caminhos por direitos. 
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Destes o manto tirano
Me obriga com desatino
A cantar, ao som do dano,
Cantares d'amor profano
Por versos d'mor divino. 
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Mas eu lustrado c'o o santo
Raio, na terra de dor, 
De confusões e de espanto, 
Como hei de cantar o canto
Que se deve ao Senhor? 
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Tanto pode o benefício
Da graça que dá saudade, 
Que ordena que a vida mude, 
E o que eu tomei por vício, 
Me faz grau para virtude;
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E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a beleza geral.
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Fique logo pendurada
Oh frauta com que tangi, 
A Jerusalém sagrada, 
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
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Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,  
Mas dos vícios desatado, 
E cá desta a ti levado, 
Pátria minha natural!
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E se eu mais der a cerviz 
A mundanos acidentes, 
Duros, tiranos e urgentes, 
Risque-se quanto já fiz
Do gram livro dos viventes!
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E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção, 
Cale-se esta confusão!
Cante-se a visão de paz!
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Ouça-me o pastor e o rei!
Retumbe este acento santo! 
Mova-se no mundo espanto, 
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto! 
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A vós só me quero ir, 
Senhor e gram Capitão
Da alta torre de Sião, 
A qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão. 
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No gram dia singular, 
Que na lira em douto som 
Jerusalém celebrar, 
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom!
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Aqueles que tintos vão
No nobre sangue inocente, 
Soberbos com o poder vão,
Arrasá-los igualmente!
Conheçam que humanos são!

E aquele poder tão duro
Dos afetos com que venho, 
Que encendem alma e engenho, 
Que já me entraram o muro 
Do livre arbítrio que tenho; 
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Estes que tão furiosos 
Gritando vem a escalar-me, 
Maus espíritos danosos, 
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me;
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Derribai-os, fiquem sós, 
De forças fracos, imbeles!
Porque não podemos nós, 
Nem com eles ir a vós, 
Nem sem vós tirar-nos deles. 
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Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão, 
Se vós, santo Capitão, 
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
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E tu, oh carne que encantas, 
Filha de Babel tão feia, 
Toda a miséria cheia, 
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
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Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer, 
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste; 
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Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez; 
Cuja alma, de vícios nua, 
 Faz nódoas na carne sua, 
Que já a carne na alma fez. 
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É beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar, 
por não virem a parar 
Em vícios graves e urgentes;
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Quem com eles logo der
Na pedra do furor santo,
 E batendo o desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Emfim "cabeça de canto:"
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Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má, 
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na Cruz esteve já;
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Que do vil contentamento
Cá  deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível,
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Ali achará alegria,
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia
Que nem por pouca recreia, 
Nem por sobeja enfastia. 
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Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza, 
Que, vencida a natureza, 
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
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Oh tu divino aposento, 
Minha pátria singular, 
Se só com te imaginar,
 Tanto sobe o entendimento, 
Que fará, se em ti se achar?
.
Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente, 
Tão justo e tão penitente
Que depois de a ti subir, 
Lá descanse eternamente! 
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Luiz de Camões

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