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domingo, 28 de setembro de 2014

CATARINA DE ATAÍDE - Por Máximo Formont

De As Inspiradoras
Catarina de Ataíde 
Pintura de Pedro Américo.

Catarina de Ataíde 

"Tu m'appelles ta vie, appelle-moi ton ame, 
Car l'ame est immortalle et la vie est un jour."

                    "Conheces uma romnaza mais divina do que esta, Spark? É uma romanza portuguesa." 
                    Assim fala o Fantasio de Musset, e tem razão: é divino o sentimento que esses versos exprimem. Pensou-se que o amor do coração não era conhecido senão dos alemães, e não se concedeu às raças do Meio Dia senão o amor dos sentidos e o amor de cabeça; é porque se não presta atenção suficiente aos portugueses. Não há dúvida que lhes queima as entranhas o calor meridional, o ardor italiano ou espanhol; mas tem ao mesmo tempo uma profundeza de sentimento, uma poesia de alma, uma melancolia, uma languidez apaixonada, que sob o ponto de vista da sensibilidade delicada e intensa, os igualam às raças eslavas e germânicas.  O Sehnsucht de Mignon, essa impressão tão complexa, feita de desejo, de pena e de sonho, corresponde exatamente à Saudade portuguesa. E foi na língua de Camões que foi escrita a primeira obra prima da paixão moderna; as cartas da religiosa de Beja a M. de Chamilly. Como Mariana Alcoforado, D. Catarina de Ataíde, a musa do grande lusitano, é um vivo símbolo do gênio poético do seu país. 
                    Branca e losa, com os olhos admiráveis das portuguesas, ela tinha uma beleza expressiva e terna, e o seu poeta fala-nos desse sorriso de alma que se lhe podia ler no rosto.  Sorriso melancólico no entanto, porque ele revela um longo hábito de sofrer com resignação e obediência, sorriso casto e quase forçado, que fica bem com o olhar vago, inundado, impenetrável na sua misteriosa doçura; olhar e sorriso dizem-nos que naturalmente o coração se põe em guarda contra toda a espécie de alegria, de qualquer alegria duvidosa, e todas as vezes que o não assalte a amargura, que é todo amor e bondade. Um encanto indefinível se desprende dessa figura e cerca essa pálida cabeça de heroína; nota-se nessas feições a paixão casta, sufocada e todavia tempestuosa como clima natal; advinha-s também nelas a tristeza e a fadiga resignada. Bela flor de estufa, que a atmosfera das côrtes fez desabrochar e ao mesmo tempo enlanguescer, morreu dum beijo demasiado ardente do sol; o gênio amoroso que se inclinou sobre ela dessecou-a sobre seus lábios, que beberam dum único trago a sua vida e os seus perfumes. 
                    Entre as inspiradoras dos grandes poetas ela é a mais tocante, tendo sido a mais mante de todas. Beatriz não concedeu ao jovem Alighieri senão um cumprimento distraído  e gracioso; Laura não viu senão um cantor em Petrarca, e o inteligente coquetismo com que o poeta foi sempre tratado teve por fim inspirar-lhe mil variações sobre as perfeições e os rigores da sua dama; Leonora de Este aparece-nos com um agrande princesa, inabordável para o desventurado Tasso. Mas, tão virtuosa como Beatriz, tão amável como Laura, tão nobre como a irmã do duque de Ferrara, Catarina de Ataíde oferece para nós um outro atrativo que não tem essas musas altaneiras; ela amou o seu poeta, foi-lhe fiel, e, tranquilamente, docemente, sem murmúrios, sem que nada alterasse a serenidade angélica da sua fisionomia, morreu de uma e outra coisa.

 II
                   Camões não a designa nas suas poesias senão pelo anagrama de Natércia. Pedro Mariz diz-nos que ela foi dama do palácio; Faria e Souza, descobrindo a décima quarta égloga, reparou que ela era dirigida à memória de D. Catarina de Ataíde. Assim se achava reconstituído o nome verdadeiro da amante de Camões. Mas esse nome foi usado ao mesmo tempo por duas damas do palácio; novo embaraço para os biógrafos. Uma delas era filha de D. Alvaro de Souza e de D. Filipa de Ataíde; casou com Rui Pereira de Miranda Borges, senhor de Carvalhais, e morreu em 1551, segundo um epitáfio que está na capela principal do antigo convento dos dominicanos de Aveiro. Descobriu-se, nos papéis do convento, um manuscrito de frei João do Rosário que lhe diz respeito, e cujo autor foi, segundo ele próprio diz, o confessor dessa dama. O frade tinha ouvido falar dos amores de Camões com uma dama de honor da rainha e do exílio do poeta ocasionado por essa paixão; interrogava sobre isso muitas vezes a sua penitente, mas ela sabia pôr termo às suas insistências por uma resposta que a livrava de todas as suposições, sem comprometer a verdadeira heroína, a outra Catarina de Ataíde. Não fora um amor contrariado, dizia ela, que tinha inspirado Camões a ideia de se expatriar; também não era vítima da vingança real e não tinha dado ocasião a um exílio da África por qualquer imprudência passional; tinha obedecido simplesmente aos impulsos do seu grande caráter, procurando a glória das empresas guerreiras nessas regiões longínquas.  
                   O visconde de Juromenha pensa, com alguma aparência de razão, que a rainha Catarina de Ataíde, zelosa da reputação das damas da sua côrte e particularmente afeiçoada a essa, tinha dado um mot d'ordre para salvaguardar a honra da verdadeira Catarina. 
                  É tempo agora de dizer que a nossa heroína era filha de D.Antônio Lima, primeiro mordomo do infante D. Duarte, filho do rei D. Manuel, depois primeiro do duque de Guimarães, filho de D. Duarte... sua mãe era D. Maria Bocanegra. Não tem razão os biógrafos de Camões, anteriores a Juromenha, que a fazem filha de D. Antônio de Ataíde, conde de Castanheira. Examinando atentamente o liro das contas da casa da rainha, Juromenha depois de ter determinado a identidade de Catarina de Ataíde, chegou a fixar nos fins do ano de 1556 a data da sua morte. A bela portuguesa vivia então ainda quando Camões já estava ha algum tempo na Índia, e essa conclusão harmoniza-se perfeitamente com as indicações que fornecem as poesias escritas durante o longo exílio do poeta. 
                  O jovem Luiz de camões acabava os seus estudos na universidade de Coimbra; era estudioso nas horas de trabalho como Petrarca, mas levava como ele uma vida alegre e galante. Não obstante, gostava já de errar nos magníficos campos circunvizinhos, e compunha os seus primeiros poemas à sombra do lendário freixo que hoje se mostra aos viajantes. É em Coimbra que está enterrado o fundador da monarquia; ao pé do Mondego encontram-se os famosos cedro e a fonte de Inês de Castro; talvez o mancebo pensasse já então na sua epopeia futura, em face de todas essas recordações da história nacional. 
                   Foi nessa época que se deu o primeiro encontro dos namorados; narrou-o o poeta em dois sonetos em que não podemos ver, diga o que disser Juromenha , senão imitações de Petrarca. Seria muito singular que ambos os poetas tivessem visto pela primeira vez as suas damas na igreja, durante os ofícios de sexta feira santa; o mais que se pode admitir é que a cena se realizasse durante uma cerimônia religiosa, e ainda isto é muito certo, porque o desejo de se assemelhar a Petrarca podia bem ter feito cometer ao mancebo mentiras poéticas muito mais graves do que aquelas que aqui lhe atribuímos. 
                   Camões era duma origem ilustre; os seus antepassados eram os Camanhos de Espanha que passaram a Portugal, por ocasião da guerra entre Fernando, filho de Pedro o Cruel, e Henrique de Transtamara, pretendente ao trono de Castela; mas a família tinha caído quase na miséria, e o pai do poeta, Simão Vaz de Camões, valente soldado, tinha tido dificuldades para prover às despesas necessárias à educações de seu filho. Uma ata pública declara expressamente  que o jovem Luiz era pobre, "mancebo pobre". Esperava que a carreira militar o faria rico e honrado, e partiu para lisboa, sem ter projetos ainda bem definidos, mas na intenção de se estabelecer na côrte e ali começar a sua fortuna, donde dependia a felicidade de possuir Catarina de Ataíde. 

III
                  Logo que chega a Lisboa, a alta sociedade recebe- de braços abertos; comparam-no a Juan de mena; D. Manuel de Portugal é o seu Mecenas; o duque de Bragança, o duque de Aveiro, o marquês de Vila Real e de Cascais, os condes de Redondo e de Sortelha, o jovem D. Antônio de Noronha são seus protetores ou seus amigos, e este último torna-se para ele um irmão. Os literatos procuram-no igualmente; o grande cômico Gil Vicente tinha já morrido, e Sá de Miranda vivia afastado; mas Bernardim Ribeiro, o autor de Menina e Moça, o infeliz apaixonado da duquesa Beatriz de saboia, manteve com o moço Camões relações bastante íntimas, e todos os poetas da côrte o reconheceram como seu mestre. Digamos, a propósito, o que era essa côrte de Portugal, galante, acadêmica, moldura refulgente de cenas algumas vezes muito sombrias. 
                   A rainha Catarina de Ataíde tinha-lhe dado o mais poético esplendor; em torno d princesa D. Maria, educada pelos seus cuidados no estudo da língua latina e das belas letras, tinha agrupado todas as mulheres dessa época que tinham criado um nome na literatura.  Viam-se nesse palácio as duas maravilhas do tempo: Ângela e Luíza Sigea; esta última sabia, entre outras línguas, o grego e o hebreu,e recebeu do papa Paulo III um breve muito elogioso agradecendo-lhe o seu poema latino sobre as belezas pitorescas de Cintra; ao lado destas duas irmãs achava-se a célebre Joana Vaz; Paula Vicente, filha do escritor; Leonor, filha do marques de Vila Real, autora dua tradução do italiano Marcus Sabellicus; tais eram as mestras encarregadas pela rainha da Instrução das damas e donzelas de honor; ela própria se consagrava à educação moral destas últimas, entre as quais não tardamos a achar D. Catarina. Pensa-se involuntariamente, ao falar de todas essas pessoas ilustradas e graciosas, na universidade feminina que Tennyson descreveu na Princesa; mas mais indulgente que a amazona Ida, Catarina de Áustria não tinha interdito aos cavaleiros galanteadores o acesso do seu colégio; ali vinham fazer assalto de espírito com as mestras e alunas, que eles celebravam em verso, da melhor maneira que podiam...
                  Dissemos já que camões foi colocado imediatamente na primeira ordem deses poetas fidalgos; mas mais que os aplausos dos seus rivais e do gracioso tribunal que lhe concedia o ramo de murta, foi o prazer d encontrar entre as damas do palácio a sua querida Catarina de Ataíde que o fez amar e poética côrte de Lisboa. Associou mais tarde nas suas obras à lembrança da sua bem-amada a das suas companheiras; celebra-as sob um disfarce alegórico, como as Ninfas do Tejo (Tagides), implora a sua proteção nos Lusíadas e, por uma carta escrita das Índias a um amigo, vemos que, durante o seu exílio, compara amargamente as suas graças savantes e as suas nobres maneiras à rusticidade das mulheres de lá, que não percebiam nada da linguagem delicada de Petrarca e de Boscan, e não seriam capazes de perceber a finura dum soneto. 
                  Compreende-se perfeitamente que Camões não era o único que tinha uma afeição amorosa no palácio. D.Miguel de Portugal era o chevalier de D. Francisca de Aragão, verdadeira rainha de beleza; dois amigos do poeta, que recebem as suas confidências, Leitão e Silveira, amavam cada um deles uma dama da côrte, e o último, companheiro de Camões nas Índias, continuou a amar, a seu exemplo, a que tinha deixado em Lisboa. 
                  No entanto, o paço estava submetido a uma disciplina extremamente severa. O rei João I fez executar um dos seus validos que se tinha introduzido de noite noite palácio; Afonso V mandou decapitar Diego de Sousa pelo mesmo motivo; Lopes Leitão, suspeito de Galanteria excessiva, foi preso em sua própria casa.  Viu-se um indivíduo apanhado em flagrante e sabendo o que o esperava, impedir a sua prisão por um suicídio; tinha penetrado de noite numa torre muito elevada para falar à sua dama; o rei Carlos V, que tinha sido prevenido, surpreendeu o colóquio, e perguntou ao cavaleiro por onde é que ele tencionava sair:
                 - Por onde entrei, respondeu o outro. E saltou pela janela. 

IV 
                  O amor de Camões, como já dissemos, foi correspondido por Catarina. Ele conseguiu, segundo a sua própria expressão, "perturbar a calma virginal dos seus pensamentos,consagrados outrora aos austeros prazeres das ninfas de Diana." O que sabemos não permite, contudo, supor que tivesse dado motivos para corar, ainda que os tivesse dado para chorar muitas vezes. 
                    Apesar do rigor com que eram guardadas as belas  damas do palácio, os dois amantes conseguiam falar-se às escondidas, à tarde, à noite ou pela manhãzinha, quando tudo ainda dormia no paço. Catarina, no seu balcão, aparecia a Camões, como Julieta a Romeu. O poeta, num soneto espanhol, publicado pela primeira vez por Juromenha, celebra a janela bem aventurada em que despontava para ele a aurora do sol da beleza Ventana venturosa ao amanhecer, etc. Era uma rara ventura para o amante apertar contra o coração a branca mão da sua deusa e cobri-la de beijos. Era preciso esconder-se durante essas curtas entrevistas, e de cada vez jogava a vida. 
                   Camões era um belo cavaleiro, de aparência altiva e orgulhosa; mas o que o fez amar foi sobretudo o prestígio da poesia que já o cercava, as suas conversas brilhantes, a sua eloquência apaixonada. Conversação foi fonte deste engano; foi, numa palavra, o seu caráter de cavaleiro poeta. Catarina sofreu a fascinação do gênio amoroso, sem ceder todavia aos arrebatamentos do amor. A certas censuras que o seu namorado lhe dirige, numa égloga, sob um nome de convenção, ela responde: 
                   - Tu sabes pouco das coisas do coração... vou revelar-te o meu segredo: eu amo-te perante deus, com uma afeição pura, com um amor inocente. Mas a tua loucura, a tua imprudente audácia, foram a causa das nossas desventuras. 
                   Com efeito, Luis de camões, filho dum pai que tinha escalado, na sua mocidade, os muros dum convento, e que tinha também, no seu passado de estudante, várias aventuras do mesmo gênero, abandonava-se ao ímpeto das suas paixões. O seu cavaleiroso respeito pela sua dama continha dificilmente essa natureza voluptuosa e ao mesmo tempo terna, que se revela em mil partes do seu poema, na famosa descrição de Vênus, por exemplo, e na narração das seduções empregadas pelas Nereides, para enfeitiçar os companheiros de Vasco da Gama.  Demais ele via sempre minguarem cada vez mais as esperanças de fortuna que lhe teria permitido casar com Catarina de Ataíde. Na febre do desânimo e na amargura do desejo não satisfeito, esqueceu a sua antiga prudência; talvez deixasse escapar mesmo algumas palavras que o traíram. Emfim, os amores ainda inocentes dos dois mancebos foram divulgados; os parentes de Catarina pediram vingança ao rei e ela teve de cortar o amor que a unia a Camões, ordenando ao seu amante que a deixasse para sempre.  
                   Crê-se que foi a malevolência dum rival que ocasionou a primeira catástrofe. Mas em todo o caso, é muito provável que o indiscreto fosse provocado em duelo por camões, tanto mais que não houve apenas maledicência, mas calúnia, como se pode ver facilmente, por ema passagem das poesias em que o amante responde à sua dama, que o acusava de a ter comprometido: "Se os maus nos caluniam à sua vontade, como posso ser responsável pela maldade dos outros." 
                   Não é possível que catarina de Ataíde, atemorizada com a audácia do seu namorado, e vendo talvez que não tinha coragem e a firmeza necessária para conter, tivesse entregado à afeição e à prudência da rainha o cuidado de a defender contra si própria, e contra aquele que amava. Sabemos, com efeito, que a rainha Catarina foi quase a única pessoa que tratou desta difícil questão; sem a sua intervenção, Camões, abandonado à justiça do rei  ou à vingança duma família orgulhosa, teria sofrido em dúvida a mesma sorte que aqueles de que falamos acima. 
                   Foi simplesmente afastado do palácio e condenado a passar algum tempo no exílio, na vila de Punhete, antigo feudo de seu avô, situado na confluência do tejo e do Zêzere, e não em Santarém, com se disse sem razão. 
                    Foi nessa época, digâmo-lo de passagem, que foi escrita a primeira parte das poesias em que faz alusão, a cada momento, à catástrofe, à separação e às angústias do exílio.
                    A tristezas amorosas do poeta fazem-lhe sombrias as esplêndidas paisagens que tem diante dos olhos; dirige-se ao Tejo, suplicando-lhe para levar as suas lágrimas à amada, como mais tarde Byron se dirigirá ao impetuoso Eridon, que passava por baixo das janelas do palácio de la Guiccioli; tem inveja às barcas ligeiras que fendem livremente as ondas de cristal. Julga horrendos e desolados esses lugares encantadores, dignos do paraíso terreal; não acha graça nem beleza a essas rochas cobertas duma luxuriante vegetação, e essas grutas misteriosas, e essas colinas revestidas pelos carvalhos e pelos limoeiros duma roupagem de folhas. Desespera de jamais vez o fim ao seu exílio. 
                  Também Catarina, por seu lado, pensava  no palácio de Lisboa e se consumia de tristeza no meio das incomparáveis magnificências dessa moradia encantada de Cintra, celebrada com tanto entusiasmo por Lord Byron, no seu Childe-Harold. É fora de dúvida que nunca esperava que seus pais lhe permitissem desposar Camões; mas agora via perdida irremissivelmente a consolação que até então tinha guardado; a doçura das lágrimas partilhadas por ambos em segredo. Demais, ela sabia-se vigiada, vítima de suspeitas, e talvez lhe fizessem duramente sentir a imprudência do seu procedimento anterior. Ei-la desde então, e para sempre, no seu papel de vítima obediente do dever filiar e de mártir serena dum amor que nunca quis abjurar.

V
                   O exílio não durou muito tempo; Camões pode voltar a Lisboa. Tornou a ver D. Catarina. Uma nova imprudência da sua parte, ou uma perfídia nova dos seus inimigos, ocasionou-lhe um segundo desvalimento dentro de muito pouco tempo. 
                   Desta vez o castigo foi mais severo. 
                   Em 1546, segundo Juromenha, o poeta teve de desembarcar em Ceuta, por uma ordem do rei ou antes da rainha, para ali ficar vários anos e guerrear contra os mouros. Nessa época tratou-se dum casamento para D. Catarina; o profeta fez, provavelmente, alusão a isso numa das suas cartas; mas aquela que tinha respeitado a vontade dos seus parentes renunciando aquele que amava, teve a coragem de não se submeter a ela quando lhe impunham uma infidelidade.  No entanto, as poesias e a correspondência de Camões atestam-nos que teve por um momento o receio dum abandono; pediu então com angústia notícias de Lisboa a um dos seus amigos. No meio dos combates quase incessantes e das fadigas extraordinárias, o pensamento de D. Catarina não o abandona. 
                   Em 1550, Camões voltou a Lisboa; tinha deixado Ceuta em companhia de D.Afonso de Noronha, nomeado vice-rei das Índias, e devia segui-lo no seu governo; queria então ilustrar-se nessa Ásia, "essa longínqua terra tão desejada, gloriosa sepultura de quem é ao mesmo tempo nobre e pobre." Mas, sem dúvida, não pode resolver-se a abandonar logo a cidade onde encontrava a presença adorada de D. Catarina, porque deixou partir os navios, e, passados três anos, estava ainda em Lisboa; talvez li permanecesse mais tempo, se ele próprio se não tivesse posto na impossibilidade de prolongar a sua demora. Um dia de festa (fazia-se a procissão do Santíssimo Sacramento, que servia de pretexto a divertimentos e mascaradas), dois dos seus amigos, mascarados, insultaram um cavaleiro, valido do rei, chamado Gonçalo Borges. Este estava armado e quis ferir com a espada os seus adversários; Camões interveio e feriu o fidalgo. 
                  Metido na cadeia, foi perdoado a pedido de certas personalidades eminentes, entre as quais Juromenha cita o bispo Pinheiro; mas foi-lhe ordenado expressamente que partisse para a Índia. 
                  No momento de embarcar, Camões viu pela última veza sua bem amada. 
                  Essa entrevista está descrita no soneto XVIV, que respira a pungente melancolia dos adeuses, mas também a nobreza duma dor heroicamente resignada. 
                  A partida realizou-se nim dia de primavera de 1553, provavelmente no mês de abril. 
                  O momento da separação foi horrível.  D. Catarina lançou-se ao peito do amante soluçando; ele estava a ponto de ficar em Lisboa, talvez à custa da sua vida e da sua honra, porque estava já alistado entre os guerreiros. Mas fez um último esforço, partiu. 
                   Era já um bravo e no seu procedimento em África tinha dado muitas provas disso; as angústias porque acabava de passar deviam exaltar o seu heroísmo até ao sublime da loucura. "Que hei de eu temer", diz ele, "depois de ter sofrido tanto?..."
                    Assim D. Catarina, que foi a inspiradora de Camões,  a sua Beatriz e a sua Laura, foi também, como Ginèvra para Lanceloto, como todas as amantes lendárias dos paladinos, quem o lançou no caminho dos nobres feitos de armas, e, sem querer, o meteu nessas aventuras que fazem da sua vida nas Índias uma epopeia. Não temos de contar aqui essa epopeia tão gloriosa, cheia de sangue e de lágrimas, porque nos não devemos esquecer que nos constituímos um historiador duma outra existência menos brilhante, menos agitada também pela repercussão das coisas exteriores, e que, pela sua uniformidade mesmo, oferece mais flanco à dor monótona e silenciosa, mas que corroí o que mata. 

VI 
                    Catarina de Ataíde não sobreviveu senão três anos à separação. Tinha contraido, segundo parece, uma dessas febres lentas que são bastante frequentes nos países tão quentes como Portugal, e para cujos estragos contribuiu certamente essa espécie de excitação nervosa produzida pela vida da côrte.  As damas de honor do palácio morriam muitas vezes muito novas. D. Catarina, apesar da sua deslumbrante beleza, era delicada e fraca; tinha sofrido muito com os seus receios, as suas emoções, a tortura moral que lhe era infringida pela dureza de seus pais, pelos acessos de ciúme a que o poeta se abandonava, e que sucediam a ímpetos de arrebatamento sensual, a imprudências constantemente renovadas. Respeitava a família e obedecia-lhe; ficava fiel a Camões, guarda intactas a sua honra e a sua dignidade, continuando a aparecer absorta como estava numa imensa dor, e prestava-se com uma graça triste, mas sorridente, aos sacrifícios quotidianos que a ferocidade do mundo exigia dela; emfim, era sempre boa, encantadora e meiga para todos, não empregando senão nessa imolação contínua de si mesma os tesouros da sua razão e da sua firmeza, numa palavra, não fazendo mal senão a si própria. Todo esse poema de resignação e do amor, amor que enche a vida, resignação de que se morre, é preciso adivinhá-lo pelo que conhecemos de D. Catarina; ele não foi escrito. 
                   Separados por mares imensos, cuja travessia era uma empresa perigosa e difícil, os dois namorados não se correspondem senão duas ou três vezes durante esses anos de agonia. A última missiva que caiu sob os olhos de D. Catarina, quase moribunda quando a recebeu, é uma poesias sublime, a mais bela inspiração do poeta segundo a nossa opinião, e a mais tocante, em todo o caso, e a mais sincera. 
                   Camões tinha tomado parte num cruzeiros ao longo das costas de Arábia, sob as ordens de Vasconcelos, e a esquadrilha que tinha sido encarregada dessa expedição fazia escala no cabo Guardafui, não podendo continuar no seu caminho por causa da monção. Durante a sua inação forçada, sobre o seu rochedo queimado pelo sol, o soldado desventurado, par quem a guerra não era mais que uma forma do exílio, sentiu-se invadir por uma horrível tristeza; estava num desses momentos em que a vida inteira nos aparece, em que o presente se ilumina das tristes reminiscência do passado e dos clarões sinistros do futuro; teve a percepção clara, implacável, do seu destino, e soltou um dos gritos de dor mais pungentes que o mundo tem ouvido depois de Job. 
"Junto de um seco, duro, estéril monte, 
Inútil e despido, calvo e informe, 
Da natureza em tudo aborrecido; 
Onde nem ave voa, ou fera dorme, 
Nem corre claro rio, ou ferve fonte, 
Nem verde ramo faz doce ruído; 
Cujo nome, do vulgo introduzido, 
É feliz, por anti-frase infelice; 
O qual a natureza
Situou junto à parte
Aonde um braço de alto mar reparte
A Abacia da Arábica aspereza,
 Em que fundada foi já foi Berenice, 
Ficando à parte, donde 
O sol, que nele ferve, se lhe esconde; 
O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que austro vem correndo, 
Limite faz, Arômata chamando;
Arômata outro tempo; que volvendo
A roda, a rude língua mal composta
Dos próprios, outro nome lhe tem dado,
Aqui no mar, que quer apressado
Entrar por garganta deste braço, 
Me trouxe em tempo, e teve,
Minha fera ventura, 
Aqui nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço; 
Porque ficasse a vida
Par o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus, e solitários,
De trabalho, de dor, de ira cheios;
Não tendo, não, somente por contrários
A vida, o Sol ardente, as águas frias, 
Os ares grossos, férvidos e feios
Mas os meus pensamentos, que são meios 
Para enganar a própria natureza, 
Também vi contra mim; 
Trazendo-me à memória
Alguma já passada, e breve glória, 
Que eu já no mundo vi quando vivi; 
Por me dobrar dos males a aspereza, 
Por mostrar-me que havia 
No mundo muitas hora de alegria. 
Aqui estive eu com estes pensamentos
Gastando tempo, e vida; os quais tão alto
Me subiam nas asas, que caía 
(Oh! vede se seria leve o salto!)
De sonhados, e vãos contentamentos, 
Em desesperação de ver um dia
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros, e em suspiros, 
Que rompiam os ares. 
Aqui a alma cativa,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada, e de prazeres;
Desamparada, e descoberta aos tiros
Da soberba fortuna. 
Soberba, inexorável, e importuna. 
Não tinha parte donde se deitasse, 
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse, por descanso; 
Tudo dor lhe era, e causa que padeça, 
Mas que pereça não; porque passasse
O quis o destino nunca manso.
Oh! que este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos da voz importunados
Parecem que se enfreiam;
Somente o céu severo, 
As estrelas, e o fado sempre fero, 
Com o meu perpétuo dano se recreiam, 
Mostrando-se potentes, e indignados
Contra um corpo terreno, 
Bicho terra, vil, e tão pequeno."

                    Mas depois desse quadro das tumultuadas agitações do poeta, depois dessa lamentação veemente e grandiosa, eis que aparece, revestida duma inefável doçura, a imagem da bem-amada amante, D. Catarina de Ataíde; Camões saúda-a numa invocação comovedora. 

"Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que alguma hora
Lembrar a uns claros olhos que já vi; 
E se esta triste voz rompendo fora, 
As orelhas angélicas tocasse
Daquela em cuja vista já vivi; 
À qual, tomando um pouco sobre si, 
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados
De meus doces terrores, 
De meus suaves males, e furores, 
Por ela padecidos, e buscados, 
E (posto que já tarde) piedosa, 
Um pouco lhe pesasse, 
E lá entre si por dura se julgasse. 
.
Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica; 
Com isto afagaria o sofrimento. 
Ah Senhora! ah Senhora! E que tão rica 
Estais, que cá tão longe de alegria
Me sustentais com doce fingimento! 
Logo que vos figura o pensamento, 
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte; 
E logo se me juntam esperanças
Com que a fronte, tornada mais serena, 
Torna os tormentos graves
Em saudades brandas, e suaves. 
.
Aqui com elas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respiram
Da parte donde estais, por vós, Senhora; 
As aves que ali voam, se vos viram, 
Que felizes, que estáveis praticando; 
Onde, como, com quem, que dia, a que hora
Ali a vida cansada se melhora, 
Toma espíritos novos, com que vença
A fortuna, e trabalho, 
Só por tornar a ver-vos, 
Só por ir a servir-vos, e querer-vos;
Dize-me o tempo que a tudo dará talho;
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca sofreu, sem tento
Me abre as chagas de novo ao sofrimento..."
.
"Assim vivo; e se alguém te perguntasse
Canção, porque não mouro
Podes-lhe responder, que porque mouro."
.
                  Como se pode ver por esses últimos versos, o poeta esperava ainda. E D.Catarina estava à morte!
                  Nos fins de 1556 já não existia. 
                  A notícia da sua morte não chegou a Camões, segundo parece, senão por ocasião da sua volta a Macau, onde tinha ido desempenhar uma missão de que o tinha encarregado o governador das Índias, Francisco barreto. Pouco depois de chegar a Goa foi metido na cadeia, como se sabe; e foi durante o seu cativeiro que ele chorou a morte de D. Catarina. Num soneto imitado de Petrarca compara-se a uma ave privada da sua companheira, que ele tinha visto através das grades da gaiola. Um outro soneto, em que se dirige à alma bem-aventurada daquela a quem amava, é um dos trechos mais célebres da poesia portuguesa: 
"Alma minha gentil, que te partiste 
Tão cedo desta vida descontente, 
Repousa lá no Céu eternamente, 
E viva eu cá na terra sempre triste. 
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Se lá no assento Etéreo, onde subiste, 
Memória desta vida se consente, 
Não te esqueças daquele amor ardente, 
Que já nos olhos meus tão puro viste. 
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E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
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Roga a Deus, que teus anos encurtou, 
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, 
Quão cedo de meus olhos te levou."

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                  Pouca coisa é a história deste amor, quanto aos fatos e aos detalhes preciosos; algumas entrevistas durante as belas noites de verão, alguns passeios furtivos no campo de Lisboa, a oferta de um retrato de Camões que esteve durante muitos anos no seio de D. Catarina, e a remessa de algumas poesias que lhe chegavam com grande perigo e bastante dificuldade, ultrapassando os mares para irem cair como pombas brancas, no palácio. Mas a grande alma apaixonada de Camões, a alma amante e sofredora da nobre Catarina, unidas num duo impressionante; mas essas almas de ternura inquieta, de amor palpitante, cheio de angústia, sob a ameaça sempre suspensa do raio, que misterioso e divino poema!... 
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BREVE BIOGRAFIA de Máximo Formont. 
                 Máximo Forment foi um literato francês que nasceu em Bar-sur-Aube em 1863. Estreou-se por um livro de versos, Refuges, 1890. Depois escreveu: Triomphe de la rose, 1896; Cantique de la rose, 1903; em verso; Voluptés; L'Inassouvie; Courtisane; Perversites; La Faute amoureuse; L'amour passe; L'Enervée; La Grande Amoureuse; Le Pêché de la mort; 1905; Le Baiser rouge e Sacrifiée, 1906; romances e novelas. Escreveu muito também sobre coisas portuguesas, entre outros livros: Les Inspiratrices, Estudo sobre Vitória Colonna, a inspiradora de Miguel ângelo, Beatriz do Dante Alighieri e Natércia de Camões, e um trabalho sobre história da literatura portuguesa. 
                  Nicéas Romeo Zanchett  


SONETOS - Por Luis de Camões

Romeo e Verônica em Petrópolis (sítio) 1973 
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SONETOS 
Num jardim adornado de verdura, 
Que esmaltavam por cima várias flores, 
Entrou um dia a deusa dos amores, 
Com a deusa da caça e da espessura. 
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Diana tomou logo uma rosa rupa, 
Vênus um roxo lírio, dos melhores; 
Mas excediam muito as outras flores
As violas na graça e formosura. 
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Perguntam a Cupido, que ali estava
Que daquelas três flores tomaria
Por mais suave e pura, e mais formosa. 
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Sorrindo-se o menino lhe tornava; 
- Todas formosas são; mas eu queria 
Viola antes que lírio, nem que rosa. 

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De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento; 
Não sei para que é ter contentamento, 
Se mais há de perder quem mais alcança. 
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Mas dou-vos esta firme segurança;
Que posto que me mate o meu tormento, 
Por as águas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança. 
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Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com coisa outra alguma se contentem; 
Antes os esqueçais que vos esqueçam. 
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Antes nesta lembrança se atormentem
Que com esquecimento desmereçam 
A glória que em sofrer tal pena sentem. 
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava. 
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Amor ali , que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura, 
Com uma rara e angélica figura
A vista da razão me salteava. 
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Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,
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Deixei-me cativar; mas hoje vendo, 
Senhora, que por vosso me queria, 
Do tempo que fui livre me arrependo. 

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Já tempo foi que meus olhos folgavam
De ver os verdes campos graciosos; 
Tempo foi já também que os sonorosos
Ribeiros meus ouvidos receavam. 
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Foi tempo que nos bosques me alegravam 
Os cantares das aves saudosos
Os freixos e os altos alamos umbrosos
Cujos ramos por cima se juntavam.
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Permanecer não pude em tal folgança, 
Não me pode durar esta alegria, 
Não quis este meu bem ter segurança. 
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Ainda eu neste tempo não sentia 
Do fero amor a força e a mudança
Os laços e as prisões com que prendia. 

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Todo animal da calma repousava, 
Só Liso o ardor dela não sentia; 
Que o repouso do fogo, em que ele ardia, 
Consistia na Ninfa que buscava. 
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Os montes parecia que abalava
O triste som das magoas que dizia; 
Mas nada o duro peito comovia, 
Que a vontade de outro posto estava. 
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Cansado já de andar pior a espessura, 
No tronco de uma faia, por lembrança, 
Escreve estas palavras de tristeza; 
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"Nunca ponha ninguém sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudável tem firmeza."

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Alegres campos, verdes arvoredos, 
Claras e frescas águas de cristal, 
Que em vós os debuxais ao natural, 
Discorrendo das alturas dos rochedos; 
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Silvestres montes, ásperos penedos 
Compostos de concerto desigual; 
Sabei que sem licença de meu mal
Já não podeis fazer meus olhos ledos. 
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E pois já me não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas, 
Nem águas que correndo alegres vem. 
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Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lágrimas saudosas, 
E nascerão saudades de meu bem. 

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Quem fosse acompanhado juntamente 
Por esses verdes campos a avezinha, 
Que depois de perder um bem que tinha, 
Não sabe mais que coisa é ser contente! 
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E quem fosse apartando-se da gente, 
Ela por companheira e por vizinha, 
Me ajudasse a chorar a pena minha, 
E eu a ela também a que ela sente! 
Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo, 
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento. 
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Mas triste quem de longe quis ventura
Que para respirar lhe falte o vento, 
E para tudo, em fim, lhe falte o mundo! 

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Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer; 
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É um não querer mais que bem querer; 
É solitário andar por entre a gente; 
É um não-contentar-se de contente; 
É cuidar que se ganha em se perder; 
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É um estar-se preso por vontade; 
É servir a quem vence o vencedor; 
É um ter com quem nos mata lealdade. 
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Mas como causar pode o seu favor
Não mortais corações conformidade, 
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor? 

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O céu, a terra, o vento sossegado, 
As ondas que se estendem por areia, 
Os peixes que no mar o sono enfreia, 
O noturno silêncio repousado; 
.
O pescador Aônio que, deitado
Onde com o vento a água se maneia, 
Chorando, o nome amado em vão nomeia, 
Que não pode ser mais que nomeado; 
.

"Ondas (dizia) antes que Amor me mate, 
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita." 
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Ninguém responde; o mar de longe bate; 
Brandamente o arvoredo; 
Lava-lhe o vento a voz, quando o vento deita.

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Cá nesta Babilônio d'donde mana
Matéria a quanto mar o mundo cria;
Cá d'onde o puro amor não tem valia,
Que a mãe, que manda mais tudo profana; 
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Cá d'onde o mal se afina, o bem se dana, 
E pode mais que a honra a tirania; 
Cá d'onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana; 
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Cá neste labirinto onde a Nobreza, 
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da Vileza; 
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Cá neste escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê-se me esquecerei de ti, Sião!

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Julga-me a gente toda por perdido, 
Vendo-me, tão entregue ao meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado, 
E de humanos comércios esquecido. 
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Mas eu, que tenho o mundo conhecido, 
E quase que sobre ele ando dobrado, 
Tenho por baixo, rústico, e enganado
Quem não é com meu mal engrandecido. 
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Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente, 
Vencendo ferro, fogo e calma. 
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Que eu por amor somente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma. 
Luis de Camões 








segunda-feira, 15 de setembro de 2014

BABEL DE SIÃO - Por Luis de Camões

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Sôbolos rios que vão 
Por Babilônia, me achei, 
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião, 
E quanto nela passei. 
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Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado, 
E tudo bem comparado; 
Babilônia, ao mal presente, 
Sião, ao tempo passado.
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Ali lembranças contentes
Na alma se representam; 
E minhas coisas ausentes
Se fizeram tão presentes, 
Como se nunca passaram. 
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Ali, depois de acordado, 
C'o rosto banhado em água
Deste sonho imaginado, 
Vi que todo o bem passado 
Não é gosto, mas é mágoa.
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E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças, 
E as mudanças dos anos, 
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
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Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura; 
O mal quão depressa vem; 
E quão triste estado tem 
Quem se fia da ventura.
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Vi aquilo que mais val 
Que então se estende melhor
Quando mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal, 
E ao mal muito pior. 
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E vi com muito trabalho 
Comprar arrependimento; 
Vi nenhum contentamento; 
E vejo-me a mim, que espalho 
Tristes palavras ao vento.
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Bem são rios estas águas
Com que banho este papel; 
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas
E confusão de Babel.
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Como homem que, por exemplo
Dos trances em que se achou, 
Depois que a guerra deixou, 
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;
Assim depois que assentei 
Que tudo a tempo gastava, 
Da tristeza que tomei, 
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava. 
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Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada, 
Dizendo: "Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo
A memória consagrada. 
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Flauta minha, que tangendo
Os montes fazíeis vir
Para onde estáveis, correndo, 
E as águas que iam descendo, 
Tornavam logo a subir, 
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Jamais vos não ouvirão
Os tigres que se amansavam; 
E as ovelhas que pastavam
Das ervas se fartarão, 
Que por vos ouvir deixavam. 
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Já não fareis docemente 
Em rosas tornar abrolhos;
Na ribeira florescente; 
Nem poreis freio à corrente, 
E mais se for dos meus olhos.
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Não movereis a espessura, 
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura; 
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
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Ficareis oferecida
À fama que sempre vela, 
Flauta de mim tão querida; 
Porque mudando-se a vida, 
Se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade 
Prazeres acomodados; 
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade 
Aqueles gostos passados. 
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Um gosto, que hoje se alcança, 
Amanhã já não o vejo;
assim nos traz a mudança
D'esperança em esperança, 
E de desejo em desejo.
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Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte? 
Fraqueza da humana sorte, 
Que quando da vida passa
Está recitando a morte! 
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Mas deixar nesta espessura  
O canto da mocidade - 
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura!
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Que idade, tempo, e espanto
De ver quão ligeiro passe, 
Nunca em mim puderam tanto 
Que, posto que deixo o canto. 
A causa dele deixasse. 
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Mas em tristezas e nojos, 
Em gosto e contentamento, 
Por sol, por neve, por vento, 
Tendre presente à los ojos
Por quien muero tan contento. 
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Órgãos e flauta deixava, 
Despojo meu tão querido, 
No salgueiro que ali estava, 
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido. 
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Mas lembranças de afeição
Que ali cativo me tinha, 
Me perguntaram então, 
Que era da música minha
Que eu cantava em Sião?
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Que foi daquele cantar, 
Das gentes tão celebrado? 
Porque o deixava usar, 
Pois sempre ajuda passar
Qualquer trabalho passado?
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Canta caminhante ledo
No caminho trabalhoso
Por entre espesso arvoredo; 
E de noite o tenebroso
Cantando refreia o medo.
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canta o preso docemente, 
Os duros grilhões tocando;
canta o segador contente; 
E o trabalhador, cantando, 
O trabalho menos sente. 
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Eu que estas coisas senti
Na alma de mágoas tão cheia, 
Como dirá (respondi)
Quem alheio está de sia
Doce canto em terra alheia? 
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Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito? 
Porque se, quem trabalhar
canta por menos cansar, 
Eu só descansos enjeito. 
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Que não parece razão,  
Nem seria coisa idônea, 
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião. 
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Que quando a muita graveza
Da saudade quebrante
Esta vital fortaleza, 
Antes morra de tristeza
Que por abrandá-la cante.
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Que se o fino pensamento 
Só na tristeza consiste, 
Não tenho medo ao tormento;
Que morrer de puro triste, 
?Que maior contentamento? 
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Nem na frauta cantarei 
O que passo e passei já, 
Nem menos o escreverei; 
Porque a pena cansará, 
E eu não descansarei.
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Que se vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha, 
E se Amor assim o ordena, 
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha. 
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Porém, se para assentar
O que sente o coração, 
A pena já me cansar, 
Não canse para voar
A memória em Sião! 
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Terra bem-aventurada, 
Se por algum movimento
D'alma me fores tirada, 
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento! 
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A pena deste desterro, 
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro, 
Essa nunca seja ouvida, 
Em castigo de meu erro!
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E se eu cantar quiser, 
Em Babilônia sujeito, 
Hierusalem, sem te ver, 
A voz, quando a mover, 
Se me congele no peito! 
.
A minha língua se apague
Às fauces, pois te perdi,
Se, enquanto viver assim, 
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti.
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Mas oh tu, terra de glória, 
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência? 
Não me lembras na memória, 
Senão na reminiscência; 
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Que a alma é taboa rasa, 
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina
Que voa da própria casa, 
E sobre à pátria divina.
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Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do céu, 
Daquela santa cidade.
Donde esta alma descendeu. 
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E aquela humana figura, 
Que cá me pode alterar, 
Não é quem se ha de buscar; 
É raio da formosura
Que só se deve d'amar.
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Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita, 
Não do sol, nem da candeia, 
É sombra daquela ideia, 
Que em Deus está mais perfeita. 
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E os que cá me cativaram, 
São poderosos afetos
Que os corações tem sujeitos; 
Sofistas, que me ensinaram
Maus caminhos por direitos. 
.
Destes o manto tirano
Me obriga com desatino
A cantar, ao som do dano,
Cantares d'amor profano
Por versos d'mor divino. 
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Mas eu lustrado c'o o santo
Raio, na terra de dor, 
De confusões e de espanto, 
Como hei de cantar o canto
Que se deve ao Senhor? 
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Tanto pode o benefício
Da graça que dá saudade, 
Que ordena que a vida mude, 
E o que eu tomei por vício, 
Me faz grau para virtude;
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E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a beleza geral.
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Fique logo pendurada
Oh frauta com que tangi, 
A Jerusalém sagrada, 
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
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Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,  
Mas dos vícios desatado, 
E cá desta a ti levado, 
Pátria minha natural!
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E se eu mais der a cerviz 
A mundanos acidentes, 
Duros, tiranos e urgentes, 
Risque-se quanto já fiz
Do gram livro dos viventes!
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E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção, 
Cale-se esta confusão!
Cante-se a visão de paz!
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Ouça-me o pastor e o rei!
Retumbe este acento santo! 
Mova-se no mundo espanto, 
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto! 
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A vós só me quero ir, 
Senhor e gram Capitão
Da alta torre de Sião, 
A qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão. 
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No gram dia singular, 
Que na lira em douto som 
Jerusalém celebrar, 
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom!
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Aqueles que tintos vão
No nobre sangue inocente, 
Soberbos com o poder vão,
Arrasá-los igualmente!
Conheçam que humanos são!

E aquele poder tão duro
Dos afetos com que venho, 
Que encendem alma e engenho, 
Que já me entraram o muro 
Do livre arbítrio que tenho; 
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Estes que tão furiosos 
Gritando vem a escalar-me, 
Maus espíritos danosos, 
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me;
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Derribai-os, fiquem sós, 
De forças fracos, imbeles!
Porque não podemos nós, 
Nem com eles ir a vós, 
Nem sem vós tirar-nos deles. 
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Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão, 
Se vós, santo Capitão, 
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
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E tu, oh carne que encantas, 
Filha de Babel tão feia, 
Toda a miséria cheia, 
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
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Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer, 
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste; 
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Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez; 
Cuja alma, de vícios nua, 
 Faz nódoas na carne sua, 
Que já a carne na alma fez. 
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É beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar, 
por não virem a parar 
Em vícios graves e urgentes;
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Quem com eles logo der
Na pedra do furor santo,
 E batendo o desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Emfim "cabeça de canto:"
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Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má, 
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na Cruz esteve já;
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Que do vil contentamento
Cá  deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível,
.
Ali achará alegria,
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia
Que nem por pouca recreia, 
Nem por sobeja enfastia. 
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Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza, 
Que, vencida a natureza, 
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
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Oh tu divino aposento, 
Minha pátria singular, 
Se só com te imaginar,
 Tanto sobe o entendimento, 
Que fará, se em ti se achar?
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Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente, 
Tão justo e tão penitente
Que depois de a ti subir, 
Lá descanse eternamente! 
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Luiz de Camões