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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

CAMÕES por Machado de Assis

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Nese soneto sobre Camões alude Machado de Assis naufrágio do poeta na foz do Mekong; por essa ocasião salvou-se ela a nado, levando em uma mão o manuscrito dos Lusíadas. Como se sabe, o poema canta a história de Portugal, entremeada na narração da viagem de Vasco da Gama. 

Quando, torcendo a chave misteriosa

que os cancelos  fechava do Oriente, 

O Gama abriu a nova terra ardente

Aos olhos da campanha valorosa.

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Talvez uma visão resplandescente 

Lhe mostrou no futuro a sonorosa

Tuba, que cantaria a ação famosa 

Aos ouvidos da própria e estranha gente.

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E disse: "Se já n'outra antiga idade,

Troia bastou aos homens, ora quero 

Mostrar que é mais humana a humanidade. 

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Pois não serás herói de um canto fero, 

Mas vencerás o tempo e a imensidade

Na voz de outro moderno e branco Homero, 

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Um dia, junto à foz de brando e amigo 

Rio de estranhas gentes habitado, 

Pelos mares aspérrimos levado, 

Salvaste o livro que viveu contigo; 

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E esse que foi às ondas arrancado, 

Já livre agora do mortal perigo, 

Serve de arca imortal, de eterno abrigo, 

Não só a i, mas ao teu berço amado.

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Assim, um homem só, naquele dia, 

Naquele escasso ponto do universo, 

Língua, história, nação, armas, poesia, 

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Salva das frias mãos do tempo adverso. 

E tudo aquilo agora o desafia, 

E tão sublime preço cabe em verso,

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sábado, 15 de agosto de 2015

A LEALDADE HEROICA DE EGAS MONIZ - Por Camões


Dos cantos III e VIII dos lusíadas 
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Já tinha vindo Henrique da conquista 
Da cidade Hierosolima sagrada, 
E do Jordão a areia tinha vista,  
Que viu de Deus a carne em si lavada; 
Que não tendo Gothfredo a quem resista, 
Depois de ter Judeia subjugada, 
Muitos que nestas guerras o ajudaram, 
Para seus senhorios se tornarem.
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Quando chegado ao fim da sua idade, 
O forte, e famoso Húngaro estremado, 
Foçado da fatal necessidade, 
O espírito deu a quem lho tinha dado; 
Ficava o filho em tenra mocidade, 
Em quem o pai deixava seu translado, 
Que no mundo os mares fortes igualava; 
Que de tal pai, tal filho se esperava. 
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Mas o velho rumor, não sei se errado, 
Que em tanta antiguidade não há certeza, 
Conta, que a mãe tomando todo o Estado, 
Do segundo himeneu não se despreza. 
O filho órfã deixava deserdado 
Dizendo  que nas terras a grandeza 
Do senhorio todo só sua era, 
Porque para casar seu pai lhas dera. 
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Mas o príncipe Affonso, que desta arte 
Se chamava, do avô tomando o nome, 
Vendo-se em suas terras não ter parte, 
Que a mãe com seu marido as manda, e come; 
Fervendo-lhe no peito o duro Marte, 
Imagina consigo como as tome; 
Resolvidas as coisas do conceito, 
Ao propósito firme segue o afeto.
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De Guimarães o campo se tingia
Com o sangue próprio da intestina guerra, 
Onde a mãe, que tão pouco o parecia, 
A seu filho negava o amor, e a terra, 
Com ele posta em campo já se via; 
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor; 
Mas nela o sensual era maior.
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Oh Progne crua! ho mágica Medea! 
Se em vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia, 
Olhai, que ainda Teresa peca mais. 
Incontinência má, cobiça feia. 
São as coisas desse erro principais; 
Oscila por uma mata o velho pai 
Esta por ambos contra o filho vai.
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Mas já o príncipe claro o vencimento
Do padrasto, e da iníqua mãe levava, 
Já lhe obedece a terra num momento, 
Que primeiro contra ele pelejava; 
Porém, vencido de ira o entendimento, 
A mãe em ferros ásperos atava; 
Mas de deus foi vingada em tempo breve; 
tanta veneração aos pais se deve!
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Eis se ajunta o soberbo castelhano, 
Para vingar injúria de Teresa, 
Contra o tão raro em gente Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa, 
Em batalha cruel o peito humano, 
Ajudada da angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta, 
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.  
Pesquisa e postagem > Nicéas Romeo Zanchett 







domingo, 23 de novembro de 2014

UM TRECHO DA VIDA DE CAMÕES - Por Guilherme Storck

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(Da vida de Luiz de Camões.)
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                 Os biógrafos de Camões deram tratos à sua imaginação, para calcularem e lidarem como é que o poeta se governaria  para joindre les deux bouts no último quartel da sua vida, quando é fato que dispunha anualmente duns 15$000 réis pelo menos. E para explicarem o caso referem que Antonio, o seu escravo Jau - a meu ver um luxo exorbitante para um poeta faminto - mendigava de noite nas ruas de Lisboa. O fantasioso Faria de Sousa acrescenta até que uma mulata, chamada Bárbora ou Bárbara, ou Luiza Bárbara, hortaliceira de seu ofício, sabendo da miséria do poeta, lhe dava de longe em longe um prato do que ia vendendo, e algumas vezes dinheiro do vendido, - e ele aceitava-o! - Em vista de  expedientes de tal laia, é pelo menos aconselhavel que nenhum dos mesmos biógrafos levantasse até hoje a questão sobre os meios de subsistência de que Luiz Vaz disporia durante o primeiro período da vida de Lisboa, cuja duração se costuma fixar de 1542 a 1553 (com duas  interrupções de três anos por junto), e sobre o seu modo de vida na grande capital cosmopolita no decurso dos oito anos. Com este silêncio pretendem iludir-se a si e aos leitores, dando ou aceitando por provado, sobre a base dos assentos da Casa da Índia, produzidos por Faria de Souza, que Simão Vaz de Camões e D. Anna de Sá residiam então em Lisboa. Jugariam de certo que os pais davam casa e mesa ao moço descuidado e ocioso, que desperdiçava o seu tempo a versejar, a atar e desatar amores, a vaguear pelas ruas e praças de Lisboa, folgando a deshoras  com amigos e companheiros em reencontros e pendências de mancebo, brigando de noite com outros valentões e deixando-se arrebatar a desafios e duelos. Diz-se que não eram raras em Lisboa as mocidades assim malbaratadas. E os biógrafos camonianos não se pejam de incluir o cantor dos Lusíadas nestas turbas de vadios (é verdade que sem alegação de provas), deixando-o chegar aos trinta anos sem modo de vida ativo, sério e rendoso, a não ser que considerem ocupação digna e bastante os dois anos de guarnição em Ceuta. Que as poesias, que ele talvez dedicou a alguns proceres, seus protetores, lhe granjeassem um sustento suficiente, é fato que ninguém poderá garantir. Todos estão de acordo em como mais tarde - de 1572 a 1580 o o poeta já afamado viveu na última miséria; em como em 1553 teve que ir para a Índia, enrolado como fidalgo pobre, entre os soldados rasos, e pouco antes em condições iguais, ou certamente pouco diversas, à Ceuta. Mas se Camões aceitou ou escolheu o serviço militar, não era um ocioso faniente como no-lo querem fazer acreditar. E não o sendo, resta a questão: qual seria o seu trabalho, o seu modo de vida, o seu fim e destino em Lisboa? 
                Entre as poesias camonianas há dez que a tradição dá, ou que a critica supõe dedicadas a um senhor D. Antonio de Noronha ou, em parte, consagradas à memória do mesmo fidalgo.
                Tal número de poesias - e de poesias importantíssimas - dirigidas ao mesmo personagem, dá que pensar, muito embora, por causa de troca entre prenomes quase  iguais, algumas delas não se relacionem com D. Antonio, mas sim com outro fidalgo: D. Antão de Noronha.  Ponhamos de parte este D. Antão, e consideremos primeiro quem foi D. Antonio, e que motivos o Camões teria para atar e estreitar relações tão íntimas, mas ainda assim de tão respeitosa amizade como aquele "Senhor", cuja morte prematura o encheu de profundíssima mágoa e lhe arrancou a promessa, depois condignamente cumprida, de eternizar o seu nome! 
                Camões dá ao se amigo D. Antonio de Noronha o título de "Senhor", tratamento que só competia a pessoas da mais qualificada nobreza. D. Antonio era filho primogênito de D. Francisco de Noronha, segundo Conde de Linhares e de sua mulher D. Violante de Andrade (filha do Tesoureiro-mor da Coroa (1549) Fernão Álvares), e sobrinho de D. Pedro de Menezes, Capitão geral de Ceuta. O avo de D. Antonio, e seu padrinho, a julgar pelo nome que é idêntico, era filho segundo do primeiro Marquês de Vila Real e recebera de D. João III o titulo de (primeiro) Conde de Linhares. A família residia nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, onde tinha bens de raiz, um pouco a montante da cidade e na mesma margem do rio Tejo, perto de um palácio régio. D. Francisco estava em relações íntimas com a família real; havia poucos anos que assistira em Paris como embaixador de Portugal, junto a Francisco I, Rei de França, 1540 (ou 1541) a 1543. É justo mencionar que favorecia as tendências literárias da sua época, e tinha ao lado como secretário, conselheiro e amigo Francisco Moraes, autor do romance de cavalaria intitulado Palmeirim de Inglaterra. Há apontamentos fidedignos sobre o nascimento do primogênito, e sobre a sorte dos outros seus filhos, no epitáfio enternecedor, inscrito numa lousa sepulcral da capela-mor do mosteiro (de São bento) de Xabregas, e diz:  Sepultura de D. Antonio de Noronha - Filho do segundo Conde de Linhares D. Francisco e da Condessa D. Violante - que os Mouros mataram em Ceuta em 18 de Abril de 1553 annos sendo elle de dezessete. 
                 O morgado D. Antonio, mancebo dotado das mais belas qualidades de espírito, dado às letras, de ânimo esforçado,  gentil cavaleiro, amestrado em todas as artes guerreiras, foi escolhido por el-rei D. João II para a alta honra de ser  parceiro e mantenedor do príncipe real D. João em um magnífico torneio. Em Enxobregas mediu-se lutando com seu amigo real (nascido a 3 de Junho de 1537), o qual, ao completar quinze anos ia dar solenemente o primeiro passo de armas, em 5 de Agosto de 1552. Os juvenis campeões, crianças maravilhosamente precoces, já eram senhores dos seus corações: ambos já o tinham empenhado a uma sua "madona Laura, ou Beatriz". O príncipe casou meses depois, em 5 de Dezembro de 1552, com sua prima, a infanta D. Joana, filha do Imperador Carlos V, mas desde então foi definhando, e morreu ao cabo de treze meses, consumpção corporal, dezoito dias antes do nascimento de seu infeliz filho D. Sebastião. 
                  D. Antonio, pelo seu lado, apaixonara-se por D. Margarida da Silva, filha de D. Garcia de Almeida, neta do segundo conde de Abrantes D. João de Almeida, e portanto sobrinha de um cavaleiro que mais tarde aparecerá com um dos íntimos amigos de Camões, D. Francisco de Almeida.
                 Ao pai, o conde D. Francisco, que talvez nutrisse ambição mais alta, não agradaram estes amores, e para desviar o filha da vista de sua amada, pensando no adágio: "longe dos olhos, longe do coração", mandou-o para Celta, onde os moços fidalgos costumavam então ganhar as suas esporas de cavaleiro. Só quem tinha lança em África, era digno da toga viril. 
                 A escolha da guarnição foi determinada pela circunstância de D. Pedro de Menezes, tio de D. Antônio, ser capitão de Ceuta. Lá alcançara importantes vantagens sobre os mouros de Tetuan, apossando-se de várias praças fortes, e estimulando assim o ódio e o desejo de vingança dos mouros. O alcaide de Tetuan desafiou o capitão, oferecendo-lhe batalha, ou antes um combate entre forças iguais de ambos os lados, que correspondessem exatamente ao número relativamente pequeno de cabeças, de que a guarnição de Ceuta podia dispor. Marcou-se o dia, e o sítio, junto do monte da Condessa, a uma légua de Ceuta. os companheiros de armas, pressentindo a traição e os embustes do mouro, aconselham o capitão a não anuir; mas D. Pedro aceita com imprudente confiança e vai afoito ao encontro do alcaide mouro vindo, aparentemente, seguido de pequena escolta, está claro que só com o número estipulado de soldados. Mas de repente, um troço de cavalaria e uma multidão de peões irrompe perfidamente; três mil infiéis atacam trezentos e tantos portugueses. Já não era possível retirar-se. Pelo menos o capitão julgou ignominia ter de servir-se de tal expediente. Voltando-se para o seu Adail, homem perito, leal e bravo, pergunta: 
                 - Que fazer, Antão Pacheco? 
                 E este, que o dissuadira da arriscada empresa, responde: 
                 - V. M. o quis assim; agora não resta senão morrer com honra. 
                 O combate principia. Breve trezentos e sete cadáveres portugueses cobrem o campo de batalha; cavaleiros experimentados e valorosos, entre eles o capitão e seu Adail Pacheco, ao lado de moços de verdes anos, que mal tinham chegado á pátria. Nomeemos além de D. Antonio de Noronha, Paulo da Silva e André Rodrigues de Beja, colo ele amigos do príncipe D. João e justadores aclamados no célebre torneiro de Xabregas, assim como Gonçalo Mendes, o primogênito do poeta Francisco de Sá de Miranda. Poucos escaparam com vida; entre eles João Rodrigues Pereira, que na "faltriqueira salvou o guião real".
                 Deste modo morreu prematuramente o jovem amigo de Camões, em 18 de Abril de 1553, na idade de dezessete anos. A sua adorada Margarida casou mais tarde, cedendo aos desejos do pai, com D. João da Silva, herdeiro da casa e do título dos condes de Portalegre. 
                  Qual seria a ocasião e o lugar onde Luiz Vaz contraiu laços de íntima amizade com D. Antonio de Noronha? o filho do pobre cavaleiro fidalgo com o descendente do poderoso conde? o adolescente com o moço imberbe e quase criança? À hora em que o herdeiro do título e da casa de Linhares exalava o último alento sobre terra africana, Camões (embarcado desde 26 de Março de 1553) ia navegando para o Oriente, depois de ter vivido encarcerado desde o Corpus-Christi de 1552 (16 de Junho) até sete de março do ano seguinte. - Nos tempos anteriores a esta prisão, o poeta teve, na opinião dos seus biógrafos, durante mais de  dois anos, a vida ociosa de um folgazão arruaceiro, e jogador valentão, ostentando qualidade que de certo não fariam com que fosse escolhido para companheiro do herdeiro de um condado português, o qual então mal contava quatorze anos. De 1548 a 1550 Camões militara em Ceuta;  estes dois anos não podem entrar, portanto, em conta. De 1546 a 1548 viveu desterrado de Lisboa, provavelmente no Ribatejo, de onde regressou com breve demora a fim de inscrever-se, embarcar e partir como soldado raso para o serviço militar da África; má ocasião ainda para travar relações com qualquer nobre cortesão! Restaria portanto disponível, para início desta amizade, exclusivamente a curta estada na capital antes de todos aqueles acontecimentos, isto é, os anos de 1544 a 1545, segundo Lobo, ou 1542 a 1545, segundo Juromenha e Braga, anos  em que D. Antonio contava de nove (ou de seis) a dez anos, enquanto Luis Vaz, segundo a fama corrente, devia ter vinte (ou dezessete) a vinte e um! A diferença que em todo o caso havia da idade de um para o outro era demasiadamente grande para que intimidade verdadeira fosse humanamente possível. Onze anos influi muitíssimo no ânimo da mocidade. 
                E apesar disso, houve, positivamente, afeição. E esta afeição perdurou até a morte de D. Antonio! E deixou na alma de camões profundas saudades!
                 Como explicar o seguinte enigma? 
                 Nenhum biógrafo tentou a solução. E amais ainda; nenhum biógrafo percebeu que havia aqui um problema, um ponto escuro. Duvidou-se apenas que algumas poesias de Camões, que tratam de amores, pudessem ter sido enviadas e dedicadas àquele "rapaz". 
                 Na vida de camões quase tudo,com pouquíssimas exceções, é conjectura, suposição, hipótese, inferida por cálculos de probabilidade. Ousemos entrar aqui também com os nossos.
                 Ao leitor benévolo e consciencioso  compete decidir se o resultado é aceitável ou não. 
                 Foi em 1543 que o conde de Linhares, D. Francisco de Noronha, voltou de França, onde vivera como embaixador ou enviado extraordinário de el-rei D. João III, desde 1540 ou 1541. Ignoro se a esposa, D. Violante, o tinha acompanhado, levando seus filhos, mas quero presumir que os recém-casados - a cuja numerosa descendência já me referi - não se separaram por anos. Seja, contudo, como for, depois da volta à pátria, o conde, que era um magnata afazendado, de alta posição e influência, não podia deixar de resolver sobre a educação de seus filhos, e em especial  do primogênito, o morgado D. Antonio.
                 A criança que ia completar sete anos, já não pertencia ao gineceu; já passara pela escola materna; talvez até já terminasse o curso dos preparatórios vernáculos, de sorte a estar apto para começar os estudos menores na escola latina.   Meios e caminhos para dar uma excelente instrução humanística à mocidade lisbonense não faltavam de modo algum.
 O novíssimo ensino dos Jesuítas era então considerados excelente e benéfico. É exatamente no mesmo ano de 1543 que o Padre-Mestre Simão Rodrigues, Provincial da ordem em Portugal, nos aparece como instrutor do Príncipe D. João. O conde tomaria as suas resoluções em Lisboa, antes de retirar ao seu palácio em Xabregas. Decidiu-se pelo ensino particular, administrado em sua própria casa por professores leigos, provavelmente depois da prévia consulta com Francisco Moraes, que parece ter desempenhado as funções, ou tido pelo menos as honras de conselheiro e aio velho na família de Linhares. Calculo que este escritor incutira ao Conde a ideia de contratar um preceptor opor intervenção do cancelário da Universidade de Coimbra e Prior-Mor de Santa Cruz, chefe dos estabelecimentos  de instrução mais considerados em todo o país, Já sabemos que este posto duplo estava então a cargo de D. Bento de Camões, o tio de Luiz Vaz. O caráter digno e austero do eclesiástico, que, ao mesmo tempo, era um erudito zeloso e distinto, oferecia garantias sobejas para uma escolha acertada. Todos confiavam em que o prelado não recomendaria para aio e mestre, educador e instrutor do jovem herdeiro da casa de Noronha, senão um mancebo notável em "virtudes e letras", isto é, brioso e de maneiras fidalgas, realçadas por eminentes dotes de espírito. 
                   Não seria portanto ligeiramente, sem refletir a sério, mas antes com certo pejo e relutância, ponderando os prós e os contras, que D. Bento daria afinal seu voto a favor do sobrinho. O receio de ser censurado de propenso à balda do nepotismo não podia nem devia dissuadi-lo, todavia, da convicção que entre todos os estudantes bacharéis de Coimbra, ou talvez de todo o reino, não havia nenhum que pudesse rivalizar com Luis Vaz quanto ao saber vasto e profundo. Poliglota, porque sabia as línguas clássicas e algumas modernas (português e espanhol), bom geógrafo e cosmógrafo, conhecedor da história universal e pátria, estava o mancebo à altura da boa educação daquele tempo, destacando-se mesmo da "schiera volgare", porque dispunha além disso de um sólido capital de conhecimentos filosóficos e teológicos. Quanto à moralidade, não havia nada a dizer. É verdade que uma afeição platônica se apoderara do seu coração, mas o sacerdote, depositário de muitos segredos que se escondem no labirinto do coração humano, calculava que a paixão juvenil não resistiria a uma distância de vinte e cinco léguas. 
"porque enfim longa ausência acaba tudo".


Continua  


domingo, 5 de outubro de 2014

ODE A CAMÕES - Por Raynouard

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ODE A CAMÕES 
Vós, que as praias trilhais do Tejo aurífero
Regei meu passo incerto, 
No tribular meu pio rendimento
Ao Luso feliz Vate. 
Mostrai-me o augusto sítio, em que repousa
Quem troou facção ínclita; 
Veja eu as honras, veja os grandes prêmios...
Que ingrata diferença! 
Dais à penúria, dais ao sofrimento
O português Homero? 
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A não por ele os pés sobre o infortúnio
Pobreza houvera-lhe hórrida
Apurado a constância; houvera-o, bárbaros! 
Atro cuidado, e penas. 
No amargo desamparo, que lhe fica? 
Só caridosa dextra, 
(Caridosa e não Lusa!) que noturna, 
Esmola o pão mesquinho
Que tem de aparecer, no sol vindouro
O Escravo leal e o amo. 
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Se o caro nome teu não pode o Vate
Ilustrar no seu metro
No meu te hei pôr segura, alta lembrança
De grão renome, Antônio. 
Sabe, que esse sublime sacrifício
Tem de achar, nos meus hinos, 
Eco fiel, oh! Servidor magnânimo, 
Nos devolvendo séculos, 
Pregoando, que enobrece esse teu zelo
De mendiguez o opróbrio. 
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Pudico zelo, que com voz submissa
Pede à piedade pública, 
Com noturno recato, o que, alto dia
Cumpria aos reis pagarem. 
Oh! não te encubras. - Olha a Belisário, 
No márcio capacete 
A esmola receber, nobre penúria 
Sem pejo assoalhando; 
Louros, palmas colhera em cem vitórias; 
Ei-lo cego e mendigo. 
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Oh! pisa ufano a triunfal Lisboa
De Febo ao claro lume; 
Impõe tributo ao povo, impõe-no à Côrte, 
Tão raro Engenho o cobre. 
C'o Poema nobre em mãos, mais atrevido
Que o Vate mesmo os peitos
Dos cidadãos abala; vê quão briosos
Se pejam, se envergonham
Da voz terrível que pediu na treva, 
Para Camões esmola. 
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Oh não! Que ele rival de Homero, e herdeiro 
De seu mendigo Fado, 
Calar sabe sofrido e sorve inteira
A taça das desditas. 
Serôdio prêmio, a ilustre ofensa o houvera, 
Que perdões escasseia.
Deixai-lhe o pundonor brioso, e irado
Consolar-se em si mesmo
No conceito que a Pátria sagrou tudo, 
Tudo sagrou a ingratos. 
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Escutai, escutai. Camões vos fala:
"Digno emblema a mim próprio
Não dei, dos meus Heróis nos altos feitos
Consolador emblema? 
Par ávidos colher d'Eáo tributos, 
Que a foz do tejo aceita, 
Bastará a valentia? Não. Faltava
Constância, que blasona 
Lutar arca por arca, c' infortúnio, 
E lutando aterra-lo"
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"O gigante do Cabo Tormentório 
Entona a fronte ao vê-los, 
Medra em vulto, devolve sobranceiro
Monstruoso o corpo lívido; 
Co' a dextra as nuvens preme d'onde rompam
Seguidas tempestades, 
Estalem os trovões, raios fuzilem; 
Recalca com a esquerda
Cavadas ondas, que lhe, à vista rasguem
Do abismo as profundezas.
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E diz raivoso: - Oh! nautas temerários,
- Virai de velas súbito; 
- Que eu sou quem pus traveses neste passo
- Pus-lhe os roncos dos perigos. - 
Mas Gama, e seus Heróis já lá avistaram, 
Raiar no cimo a glória, 
Que tem de alardeá-los  no Universo. 
Magnânimos Guerreiros
Afrontam raios, e transpondo abismos
O azul tridente roubam.  
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Quem não aplaude neste quadro, o intrépido
Que denodado rompe
O través, que lhe embarga o passo franco
Ao póstero renome? 
Se novas sendas tenta a colher afoito 
Imortais palmas, logo 
Traça a ignorância, a Inveja castigar-lhe 
A profícua ousadia. 
Avexam-no? - Ele nobre se abalança
Ao grêmio do Futuro.
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Não espereis, que ele frouxo se lastime, 
Nem de homens, nem de Fados.
Nele desdem não punge, nem desprezo
Vosso: lançou ele a âncora
De esperança. Se a inveja inexorável, 
De que o insultou se ufana, 
Ele contempla que a expiar o lançam
Culpas de herói virtuoso; 
Fita a glória imortal, que o aguarda, - e olvida
Murmurar contra a Inveja.
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Que nos vale esse obséquio vão, do Povo
Tonto na afeição sua?
Que revezes dá cultos , dá desprezos, 
À imagem nossa? Ouçamos
 O que instinto magnânimo vos clama, 
 Quão longa e nobre estima
Em Era, em Clima, ignotos, nos espera. 
Condenam-nos? Desdenham-nos? 
Profano é tudo aqui? - mais nossos nomes
Serão por lá, sagrados."
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Por fim Camões. Contemplo com respeito
O Herói  de adversos Fados, 
Que exemplo de sofrer com dignidade
Em si brioso o ostenta. 
Vós, Talentos, que ultraja a sorte injusta, 
Ou de Homens a ignorância, 
Mirai-vos nesse brio, e firmes sede 
Na luta nobre: - Vivos, 
Se perseguidos sois, na Era vindoura, 
Mortos, vos erguem aras. 
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Francisco Justo Maria Raynouard
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR 
           Francisco Justo Maria Raynouard, dramaturgo, historiador e filósofo francês, nasceu em Brignoles em Setembro de 1761  morreu em Passy (Paris) a 27 de Outubro de 1836. Advogado em Draguignan, foi eleito em 1791 deputado à assembléia legislativa, fez causa com os girondinos pelo que foi preso sendo salvo no 9 Thermidor. Entre outras obras, deixou Caton d'Utique, cheio de alusões aos acontecimentos da época; Socrate dans le temple d'Aglaure, Poesia premiada  pela Academia, 1810, que teve grande êxito no teatro. Foi de novo eleito membro do corpo legislativo, 1806, e em 1807 da Academia. Deixou depois os trabalhos literários para se ocupar exclusivamente de erudição e filologia. Neste novo campo deixou: Histoire du droit municipal en France, 1829; Choix de poésies originales des troubadours, 1816-26, e Lexique roman, 1838-44. 
Nicéas Romeo Zanchett 


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

CAMÕES NÁUFRAGO - Por Almeida Garrett

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Cedendo à fúria de Netuno irado 
Sossobra a nau que o gran'tesouro encerra; 
Luta c'a morte na espumosa serra 
O divino cantor do Gama ousado.
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Ai do Canto misterioso a Lysia dado!...
Camões, o grande Camões, embalde a terra
Teu braço forte, nadador aferra,
Se o Canto lá ficou no mar salgado.
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Chorai, lusos, chorai! Tu, morre, ó Gama, 
Foi-se a tua gloria... Não; lá vai rompendo
Co'a dextra o mar, na sestra a lusa fama.
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Eterno, eterno ficará vivendo; 
E a torpe inveja, que inda agora brama, 
No abismo cairá do Averno horrendo.
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Almeida Garrett 


domingo, 28 de setembro de 2014

CATARINA DE ATAÍDE - Por Máximo Formont

De As Inspiradoras
Catarina de Ataíde 
Pintura de Pedro Américo.

Catarina de Ataíde 

"Tu m'appelles ta vie, appelle-moi ton ame, 
Car l'ame est immortalle et la vie est un jour."

                    "Conheces uma romnaza mais divina do que esta, Spark? É uma romanza portuguesa." 
                    Assim fala o Fantasio de Musset, e tem razão: é divino o sentimento que esses versos exprimem. Pensou-se que o amor do coração não era conhecido senão dos alemães, e não se concedeu às raças do Meio Dia senão o amor dos sentidos e o amor de cabeça; é porque se não presta atenção suficiente aos portugueses. Não há dúvida que lhes queima as entranhas o calor meridional, o ardor italiano ou espanhol; mas tem ao mesmo tempo uma profundeza de sentimento, uma poesia de alma, uma melancolia, uma languidez apaixonada, que sob o ponto de vista da sensibilidade delicada e intensa, os igualam às raças eslavas e germânicas.  O Sehnsucht de Mignon, essa impressão tão complexa, feita de desejo, de pena e de sonho, corresponde exatamente à Saudade portuguesa. E foi na língua de Camões que foi escrita a primeira obra prima da paixão moderna; as cartas da religiosa de Beja a M. de Chamilly. Como Mariana Alcoforado, D. Catarina de Ataíde, a musa do grande lusitano, é um vivo símbolo do gênio poético do seu país. 
                    Branca e losa, com os olhos admiráveis das portuguesas, ela tinha uma beleza expressiva e terna, e o seu poeta fala-nos desse sorriso de alma que se lhe podia ler no rosto.  Sorriso melancólico no entanto, porque ele revela um longo hábito de sofrer com resignação e obediência, sorriso casto e quase forçado, que fica bem com o olhar vago, inundado, impenetrável na sua misteriosa doçura; olhar e sorriso dizem-nos que naturalmente o coração se põe em guarda contra toda a espécie de alegria, de qualquer alegria duvidosa, e todas as vezes que o não assalte a amargura, que é todo amor e bondade. Um encanto indefinível se desprende dessa figura e cerca essa pálida cabeça de heroína; nota-se nessas feições a paixão casta, sufocada e todavia tempestuosa como clima natal; advinha-s também nelas a tristeza e a fadiga resignada. Bela flor de estufa, que a atmosfera das côrtes fez desabrochar e ao mesmo tempo enlanguescer, morreu dum beijo demasiado ardente do sol; o gênio amoroso que se inclinou sobre ela dessecou-a sobre seus lábios, que beberam dum único trago a sua vida e os seus perfumes. 
                    Entre as inspiradoras dos grandes poetas ela é a mais tocante, tendo sido a mais mante de todas. Beatriz não concedeu ao jovem Alighieri senão um cumprimento distraído  e gracioso; Laura não viu senão um cantor em Petrarca, e o inteligente coquetismo com que o poeta foi sempre tratado teve por fim inspirar-lhe mil variações sobre as perfeições e os rigores da sua dama; Leonora de Este aparece-nos com um agrande princesa, inabordável para o desventurado Tasso. Mas, tão virtuosa como Beatriz, tão amável como Laura, tão nobre como a irmã do duque de Ferrara, Catarina de Ataíde oferece para nós um outro atrativo que não tem essas musas altaneiras; ela amou o seu poeta, foi-lhe fiel, e, tranquilamente, docemente, sem murmúrios, sem que nada alterasse a serenidade angélica da sua fisionomia, morreu de uma e outra coisa.

 II
                   Camões não a designa nas suas poesias senão pelo anagrama de Natércia. Pedro Mariz diz-nos que ela foi dama do palácio; Faria e Souza, descobrindo a décima quarta égloga, reparou que ela era dirigida à memória de D. Catarina de Ataíde. Assim se achava reconstituído o nome verdadeiro da amante de Camões. Mas esse nome foi usado ao mesmo tempo por duas damas do palácio; novo embaraço para os biógrafos. Uma delas era filha de D. Alvaro de Souza e de D. Filipa de Ataíde; casou com Rui Pereira de Miranda Borges, senhor de Carvalhais, e morreu em 1551, segundo um epitáfio que está na capela principal do antigo convento dos dominicanos de Aveiro. Descobriu-se, nos papéis do convento, um manuscrito de frei João do Rosário que lhe diz respeito, e cujo autor foi, segundo ele próprio diz, o confessor dessa dama. O frade tinha ouvido falar dos amores de Camões com uma dama de honor da rainha e do exílio do poeta ocasionado por essa paixão; interrogava sobre isso muitas vezes a sua penitente, mas ela sabia pôr termo às suas insistências por uma resposta que a livrava de todas as suposições, sem comprometer a verdadeira heroína, a outra Catarina de Ataíde. Não fora um amor contrariado, dizia ela, que tinha inspirado Camões a ideia de se expatriar; também não era vítima da vingança real e não tinha dado ocasião a um exílio da África por qualquer imprudência passional; tinha obedecido simplesmente aos impulsos do seu grande caráter, procurando a glória das empresas guerreiras nessas regiões longínquas.  
                   O visconde de Juromenha pensa, com alguma aparência de razão, que a rainha Catarina de Ataíde, zelosa da reputação das damas da sua côrte e particularmente afeiçoada a essa, tinha dado um mot d'ordre para salvaguardar a honra da verdadeira Catarina. 
                  É tempo agora de dizer que a nossa heroína era filha de D.Antônio Lima, primeiro mordomo do infante D. Duarte, filho do rei D. Manuel, depois primeiro do duque de Guimarães, filho de D. Duarte... sua mãe era D. Maria Bocanegra. Não tem razão os biógrafos de Camões, anteriores a Juromenha, que a fazem filha de D. Antônio de Ataíde, conde de Castanheira. Examinando atentamente o liro das contas da casa da rainha, Juromenha depois de ter determinado a identidade de Catarina de Ataíde, chegou a fixar nos fins do ano de 1556 a data da sua morte. A bela portuguesa vivia então ainda quando Camões já estava ha algum tempo na Índia, e essa conclusão harmoniza-se perfeitamente com as indicações que fornecem as poesias escritas durante o longo exílio do poeta. 
                  O jovem Luiz de camões acabava os seus estudos na universidade de Coimbra; era estudioso nas horas de trabalho como Petrarca, mas levava como ele uma vida alegre e galante. Não obstante, gostava já de errar nos magníficos campos circunvizinhos, e compunha os seus primeiros poemas à sombra do lendário freixo que hoje se mostra aos viajantes. É em Coimbra que está enterrado o fundador da monarquia; ao pé do Mondego encontram-se os famosos cedro e a fonte de Inês de Castro; talvez o mancebo pensasse já então na sua epopeia futura, em face de todas essas recordações da história nacional. 
                   Foi nessa época que se deu o primeiro encontro dos namorados; narrou-o o poeta em dois sonetos em que não podemos ver, diga o que disser Juromenha , senão imitações de Petrarca. Seria muito singular que ambos os poetas tivessem visto pela primeira vez as suas damas na igreja, durante os ofícios de sexta feira santa; o mais que se pode admitir é que a cena se realizasse durante uma cerimônia religiosa, e ainda isto é muito certo, porque o desejo de se assemelhar a Petrarca podia bem ter feito cometer ao mancebo mentiras poéticas muito mais graves do que aquelas que aqui lhe atribuímos. 
                   Camões era duma origem ilustre; os seus antepassados eram os Camanhos de Espanha que passaram a Portugal, por ocasião da guerra entre Fernando, filho de Pedro o Cruel, e Henrique de Transtamara, pretendente ao trono de Castela; mas a família tinha caído quase na miséria, e o pai do poeta, Simão Vaz de Camões, valente soldado, tinha tido dificuldades para prover às despesas necessárias à educações de seu filho. Uma ata pública declara expressamente  que o jovem Luiz era pobre, "mancebo pobre". Esperava que a carreira militar o faria rico e honrado, e partiu para lisboa, sem ter projetos ainda bem definidos, mas na intenção de se estabelecer na côrte e ali começar a sua fortuna, donde dependia a felicidade de possuir Catarina de Ataíde. 

III
                  Logo que chega a Lisboa, a alta sociedade recebe- de braços abertos; comparam-no a Juan de mena; D. Manuel de Portugal é o seu Mecenas; o duque de Bragança, o duque de Aveiro, o marquês de Vila Real e de Cascais, os condes de Redondo e de Sortelha, o jovem D. Antônio de Noronha são seus protetores ou seus amigos, e este último torna-se para ele um irmão. Os literatos procuram-no igualmente; o grande cômico Gil Vicente tinha já morrido, e Sá de Miranda vivia afastado; mas Bernardim Ribeiro, o autor de Menina e Moça, o infeliz apaixonado da duquesa Beatriz de saboia, manteve com o moço Camões relações bastante íntimas, e todos os poetas da côrte o reconheceram como seu mestre. Digamos, a propósito, o que era essa côrte de Portugal, galante, acadêmica, moldura refulgente de cenas algumas vezes muito sombrias. 
                   A rainha Catarina de Ataíde tinha-lhe dado o mais poético esplendor; em torno d princesa D. Maria, educada pelos seus cuidados no estudo da língua latina e das belas letras, tinha agrupado todas as mulheres dessa época que tinham criado um nome na literatura.  Viam-se nesse palácio as duas maravilhas do tempo: Ângela e Luíza Sigea; esta última sabia, entre outras línguas, o grego e o hebreu,e recebeu do papa Paulo III um breve muito elogioso agradecendo-lhe o seu poema latino sobre as belezas pitorescas de Cintra; ao lado destas duas irmãs achava-se a célebre Joana Vaz; Paula Vicente, filha do escritor; Leonor, filha do marques de Vila Real, autora dua tradução do italiano Marcus Sabellicus; tais eram as mestras encarregadas pela rainha da Instrução das damas e donzelas de honor; ela própria se consagrava à educação moral destas últimas, entre as quais não tardamos a achar D. Catarina. Pensa-se involuntariamente, ao falar de todas essas pessoas ilustradas e graciosas, na universidade feminina que Tennyson descreveu na Princesa; mas mais indulgente que a amazona Ida, Catarina de Áustria não tinha interdito aos cavaleiros galanteadores o acesso do seu colégio; ali vinham fazer assalto de espírito com as mestras e alunas, que eles celebravam em verso, da melhor maneira que podiam...
                  Dissemos já que camões foi colocado imediatamente na primeira ordem deses poetas fidalgos; mas mais que os aplausos dos seus rivais e do gracioso tribunal que lhe concedia o ramo de murta, foi o prazer d encontrar entre as damas do palácio a sua querida Catarina de Ataíde que o fez amar e poética côrte de Lisboa. Associou mais tarde nas suas obras à lembrança da sua bem-amada a das suas companheiras; celebra-as sob um disfarce alegórico, como as Ninfas do Tejo (Tagides), implora a sua proteção nos Lusíadas e, por uma carta escrita das Índias a um amigo, vemos que, durante o seu exílio, compara amargamente as suas graças savantes e as suas nobres maneiras à rusticidade das mulheres de lá, que não percebiam nada da linguagem delicada de Petrarca e de Boscan, e não seriam capazes de perceber a finura dum soneto. 
                  Compreende-se perfeitamente que Camões não era o único que tinha uma afeição amorosa no palácio. D.Miguel de Portugal era o chevalier de D. Francisca de Aragão, verdadeira rainha de beleza; dois amigos do poeta, que recebem as suas confidências, Leitão e Silveira, amavam cada um deles uma dama da côrte, e o último, companheiro de Camões nas Índias, continuou a amar, a seu exemplo, a que tinha deixado em Lisboa. 
                  No entanto, o paço estava submetido a uma disciplina extremamente severa. O rei João I fez executar um dos seus validos que se tinha introduzido de noite noite palácio; Afonso V mandou decapitar Diego de Sousa pelo mesmo motivo; Lopes Leitão, suspeito de Galanteria excessiva, foi preso em sua própria casa.  Viu-se um indivíduo apanhado em flagrante e sabendo o que o esperava, impedir a sua prisão por um suicídio; tinha penetrado de noite numa torre muito elevada para falar à sua dama; o rei Carlos V, que tinha sido prevenido, surpreendeu o colóquio, e perguntou ao cavaleiro por onde é que ele tencionava sair:
                 - Por onde entrei, respondeu o outro. E saltou pela janela. 

IV 
                  O amor de Camões, como já dissemos, foi correspondido por Catarina. Ele conseguiu, segundo a sua própria expressão, "perturbar a calma virginal dos seus pensamentos,consagrados outrora aos austeros prazeres das ninfas de Diana." O que sabemos não permite, contudo, supor que tivesse dado motivos para corar, ainda que os tivesse dado para chorar muitas vezes. 
                    Apesar do rigor com que eram guardadas as belas  damas do palácio, os dois amantes conseguiam falar-se às escondidas, à tarde, à noite ou pela manhãzinha, quando tudo ainda dormia no paço. Catarina, no seu balcão, aparecia a Camões, como Julieta a Romeu. O poeta, num soneto espanhol, publicado pela primeira vez por Juromenha, celebra a janela bem aventurada em que despontava para ele a aurora do sol da beleza Ventana venturosa ao amanhecer, etc. Era uma rara ventura para o amante apertar contra o coração a branca mão da sua deusa e cobri-la de beijos. Era preciso esconder-se durante essas curtas entrevistas, e de cada vez jogava a vida. 
                   Camões era um belo cavaleiro, de aparência altiva e orgulhosa; mas o que o fez amar foi sobretudo o prestígio da poesia que já o cercava, as suas conversas brilhantes, a sua eloquência apaixonada. Conversação foi fonte deste engano; foi, numa palavra, o seu caráter de cavaleiro poeta. Catarina sofreu a fascinação do gênio amoroso, sem ceder todavia aos arrebatamentos do amor. A certas censuras que o seu namorado lhe dirige, numa égloga, sob um nome de convenção, ela responde: 
                   - Tu sabes pouco das coisas do coração... vou revelar-te o meu segredo: eu amo-te perante deus, com uma afeição pura, com um amor inocente. Mas a tua loucura, a tua imprudente audácia, foram a causa das nossas desventuras. 
                   Com efeito, Luis de camões, filho dum pai que tinha escalado, na sua mocidade, os muros dum convento, e que tinha também, no seu passado de estudante, várias aventuras do mesmo gênero, abandonava-se ao ímpeto das suas paixões. O seu cavaleiroso respeito pela sua dama continha dificilmente essa natureza voluptuosa e ao mesmo tempo terna, que se revela em mil partes do seu poema, na famosa descrição de Vênus, por exemplo, e na narração das seduções empregadas pelas Nereides, para enfeitiçar os companheiros de Vasco da Gama.  Demais ele via sempre minguarem cada vez mais as esperanças de fortuna que lhe teria permitido casar com Catarina de Ataíde. Na febre do desânimo e na amargura do desejo não satisfeito, esqueceu a sua antiga prudência; talvez deixasse escapar mesmo algumas palavras que o traíram. Emfim, os amores ainda inocentes dos dois mancebos foram divulgados; os parentes de Catarina pediram vingança ao rei e ela teve de cortar o amor que a unia a Camões, ordenando ao seu amante que a deixasse para sempre.  
                   Crê-se que foi a malevolência dum rival que ocasionou a primeira catástrofe. Mas em todo o caso, é muito provável que o indiscreto fosse provocado em duelo por camões, tanto mais que não houve apenas maledicência, mas calúnia, como se pode ver facilmente, por ema passagem das poesias em que o amante responde à sua dama, que o acusava de a ter comprometido: "Se os maus nos caluniam à sua vontade, como posso ser responsável pela maldade dos outros." 
                   Não é possível que catarina de Ataíde, atemorizada com a audácia do seu namorado, e vendo talvez que não tinha coragem e a firmeza necessária para conter, tivesse entregado à afeição e à prudência da rainha o cuidado de a defender contra si própria, e contra aquele que amava. Sabemos, com efeito, que a rainha Catarina foi quase a única pessoa que tratou desta difícil questão; sem a sua intervenção, Camões, abandonado à justiça do rei  ou à vingança duma família orgulhosa, teria sofrido em dúvida a mesma sorte que aqueles de que falamos acima. 
                   Foi simplesmente afastado do palácio e condenado a passar algum tempo no exílio, na vila de Punhete, antigo feudo de seu avô, situado na confluência do tejo e do Zêzere, e não em Santarém, com se disse sem razão. 
                    Foi nessa época, digâmo-lo de passagem, que foi escrita a primeira parte das poesias em que faz alusão, a cada momento, à catástrofe, à separação e às angústias do exílio.
                    A tristezas amorosas do poeta fazem-lhe sombrias as esplêndidas paisagens que tem diante dos olhos; dirige-se ao Tejo, suplicando-lhe para levar as suas lágrimas à amada, como mais tarde Byron se dirigirá ao impetuoso Eridon, que passava por baixo das janelas do palácio de la Guiccioli; tem inveja às barcas ligeiras que fendem livremente as ondas de cristal. Julga horrendos e desolados esses lugares encantadores, dignos do paraíso terreal; não acha graça nem beleza a essas rochas cobertas duma luxuriante vegetação, e essas grutas misteriosas, e essas colinas revestidas pelos carvalhos e pelos limoeiros duma roupagem de folhas. Desespera de jamais vez o fim ao seu exílio. 
                  Também Catarina, por seu lado, pensava  no palácio de Lisboa e se consumia de tristeza no meio das incomparáveis magnificências dessa moradia encantada de Cintra, celebrada com tanto entusiasmo por Lord Byron, no seu Childe-Harold. É fora de dúvida que nunca esperava que seus pais lhe permitissem desposar Camões; mas agora via perdida irremissivelmente a consolação que até então tinha guardado; a doçura das lágrimas partilhadas por ambos em segredo. Demais, ela sabia-se vigiada, vítima de suspeitas, e talvez lhe fizessem duramente sentir a imprudência do seu procedimento anterior. Ei-la desde então, e para sempre, no seu papel de vítima obediente do dever filiar e de mártir serena dum amor que nunca quis abjurar.

V
                   O exílio não durou muito tempo; Camões pode voltar a Lisboa. Tornou a ver D. Catarina. Uma nova imprudência da sua parte, ou uma perfídia nova dos seus inimigos, ocasionou-lhe um segundo desvalimento dentro de muito pouco tempo. 
                   Desta vez o castigo foi mais severo. 
                   Em 1546, segundo Juromenha, o poeta teve de desembarcar em Ceuta, por uma ordem do rei ou antes da rainha, para ali ficar vários anos e guerrear contra os mouros. Nessa época tratou-se dum casamento para D. Catarina; o profeta fez, provavelmente, alusão a isso numa das suas cartas; mas aquela que tinha respeitado a vontade dos seus parentes renunciando aquele que amava, teve a coragem de não se submeter a ela quando lhe impunham uma infidelidade.  No entanto, as poesias e a correspondência de Camões atestam-nos que teve por um momento o receio dum abandono; pediu então com angústia notícias de Lisboa a um dos seus amigos. No meio dos combates quase incessantes e das fadigas extraordinárias, o pensamento de D. Catarina não o abandona. 
                   Em 1550, Camões voltou a Lisboa; tinha deixado Ceuta em companhia de D.Afonso de Noronha, nomeado vice-rei das Índias, e devia segui-lo no seu governo; queria então ilustrar-se nessa Ásia, "essa longínqua terra tão desejada, gloriosa sepultura de quem é ao mesmo tempo nobre e pobre." Mas, sem dúvida, não pode resolver-se a abandonar logo a cidade onde encontrava a presença adorada de D. Catarina, porque deixou partir os navios, e, passados três anos, estava ainda em Lisboa; talvez li permanecesse mais tempo, se ele próprio se não tivesse posto na impossibilidade de prolongar a sua demora. Um dia de festa (fazia-se a procissão do Santíssimo Sacramento, que servia de pretexto a divertimentos e mascaradas), dois dos seus amigos, mascarados, insultaram um cavaleiro, valido do rei, chamado Gonçalo Borges. Este estava armado e quis ferir com a espada os seus adversários; Camões interveio e feriu o fidalgo. 
                  Metido na cadeia, foi perdoado a pedido de certas personalidades eminentes, entre as quais Juromenha cita o bispo Pinheiro; mas foi-lhe ordenado expressamente que partisse para a Índia. 
                  No momento de embarcar, Camões viu pela última veza sua bem amada. 
                  Essa entrevista está descrita no soneto XVIV, que respira a pungente melancolia dos adeuses, mas também a nobreza duma dor heroicamente resignada. 
                  A partida realizou-se nim dia de primavera de 1553, provavelmente no mês de abril. 
                  O momento da separação foi horrível.  D. Catarina lançou-se ao peito do amante soluçando; ele estava a ponto de ficar em Lisboa, talvez à custa da sua vida e da sua honra, porque estava já alistado entre os guerreiros. Mas fez um último esforço, partiu. 
                   Era já um bravo e no seu procedimento em África tinha dado muitas provas disso; as angústias porque acabava de passar deviam exaltar o seu heroísmo até ao sublime da loucura. "Que hei de eu temer", diz ele, "depois de ter sofrido tanto?..."
                    Assim D. Catarina, que foi a inspiradora de Camões,  a sua Beatriz e a sua Laura, foi também, como Ginèvra para Lanceloto, como todas as amantes lendárias dos paladinos, quem o lançou no caminho dos nobres feitos de armas, e, sem querer, o meteu nessas aventuras que fazem da sua vida nas Índias uma epopeia. Não temos de contar aqui essa epopeia tão gloriosa, cheia de sangue e de lágrimas, porque nos não devemos esquecer que nos constituímos um historiador duma outra existência menos brilhante, menos agitada também pela repercussão das coisas exteriores, e que, pela sua uniformidade mesmo, oferece mais flanco à dor monótona e silenciosa, mas que corroí o que mata. 

VI 
                    Catarina de Ataíde não sobreviveu senão três anos à separação. Tinha contraido, segundo parece, uma dessas febres lentas que são bastante frequentes nos países tão quentes como Portugal, e para cujos estragos contribuiu certamente essa espécie de excitação nervosa produzida pela vida da côrte.  As damas de honor do palácio morriam muitas vezes muito novas. D. Catarina, apesar da sua deslumbrante beleza, era delicada e fraca; tinha sofrido muito com os seus receios, as suas emoções, a tortura moral que lhe era infringida pela dureza de seus pais, pelos acessos de ciúme a que o poeta se abandonava, e que sucediam a ímpetos de arrebatamento sensual, a imprudências constantemente renovadas. Respeitava a família e obedecia-lhe; ficava fiel a Camões, guarda intactas a sua honra e a sua dignidade, continuando a aparecer absorta como estava numa imensa dor, e prestava-se com uma graça triste, mas sorridente, aos sacrifícios quotidianos que a ferocidade do mundo exigia dela; emfim, era sempre boa, encantadora e meiga para todos, não empregando senão nessa imolação contínua de si mesma os tesouros da sua razão e da sua firmeza, numa palavra, não fazendo mal senão a si própria. Todo esse poema de resignação e do amor, amor que enche a vida, resignação de que se morre, é preciso adivinhá-lo pelo que conhecemos de D. Catarina; ele não foi escrito. 
                   Separados por mares imensos, cuja travessia era uma empresa perigosa e difícil, os dois namorados não se correspondem senão duas ou três vezes durante esses anos de agonia. A última missiva que caiu sob os olhos de D. Catarina, quase moribunda quando a recebeu, é uma poesias sublime, a mais bela inspiração do poeta segundo a nossa opinião, e a mais tocante, em todo o caso, e a mais sincera. 
                   Camões tinha tomado parte num cruzeiros ao longo das costas de Arábia, sob as ordens de Vasconcelos, e a esquadrilha que tinha sido encarregada dessa expedição fazia escala no cabo Guardafui, não podendo continuar no seu caminho por causa da monção. Durante a sua inação forçada, sobre o seu rochedo queimado pelo sol, o soldado desventurado, par quem a guerra não era mais que uma forma do exílio, sentiu-se invadir por uma horrível tristeza; estava num desses momentos em que a vida inteira nos aparece, em que o presente se ilumina das tristes reminiscência do passado e dos clarões sinistros do futuro; teve a percepção clara, implacável, do seu destino, e soltou um dos gritos de dor mais pungentes que o mundo tem ouvido depois de Job. 
"Junto de um seco, duro, estéril monte, 
Inútil e despido, calvo e informe, 
Da natureza em tudo aborrecido; 
Onde nem ave voa, ou fera dorme, 
Nem corre claro rio, ou ferve fonte, 
Nem verde ramo faz doce ruído; 
Cujo nome, do vulgo introduzido, 
É feliz, por anti-frase infelice; 
O qual a natureza
Situou junto à parte
Aonde um braço de alto mar reparte
A Abacia da Arábica aspereza,
 Em que fundada foi já foi Berenice, 
Ficando à parte, donde 
O sol, que nele ferve, se lhe esconde; 
O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que austro vem correndo, 
Limite faz, Arômata chamando;
Arômata outro tempo; que volvendo
A roda, a rude língua mal composta
Dos próprios, outro nome lhe tem dado,
Aqui no mar, que quer apressado
Entrar por garganta deste braço, 
Me trouxe em tempo, e teve,
Minha fera ventura, 
Aqui nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço; 
Porque ficasse a vida
Par o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus, e solitários,
De trabalho, de dor, de ira cheios;
Não tendo, não, somente por contrários
A vida, o Sol ardente, as águas frias, 
Os ares grossos, férvidos e feios
Mas os meus pensamentos, que são meios 
Para enganar a própria natureza, 
Também vi contra mim; 
Trazendo-me à memória
Alguma já passada, e breve glória, 
Que eu já no mundo vi quando vivi; 
Por me dobrar dos males a aspereza, 
Por mostrar-me que havia 
No mundo muitas hora de alegria. 
Aqui estive eu com estes pensamentos
Gastando tempo, e vida; os quais tão alto
Me subiam nas asas, que caía 
(Oh! vede se seria leve o salto!)
De sonhados, e vãos contentamentos, 
Em desesperação de ver um dia
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros, e em suspiros, 
Que rompiam os ares. 
Aqui a alma cativa,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada, e de prazeres;
Desamparada, e descoberta aos tiros
Da soberba fortuna. 
Soberba, inexorável, e importuna. 
Não tinha parte donde se deitasse, 
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse, por descanso; 
Tudo dor lhe era, e causa que padeça, 
Mas que pereça não; porque passasse
O quis o destino nunca manso.
Oh! que este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos da voz importunados
Parecem que se enfreiam;
Somente o céu severo, 
As estrelas, e o fado sempre fero, 
Com o meu perpétuo dano se recreiam, 
Mostrando-se potentes, e indignados
Contra um corpo terreno, 
Bicho terra, vil, e tão pequeno."

                    Mas depois desse quadro das tumultuadas agitações do poeta, depois dessa lamentação veemente e grandiosa, eis que aparece, revestida duma inefável doçura, a imagem da bem-amada amante, D. Catarina de Ataíde; Camões saúda-a numa invocação comovedora. 

"Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que alguma hora
Lembrar a uns claros olhos que já vi; 
E se esta triste voz rompendo fora, 
As orelhas angélicas tocasse
Daquela em cuja vista já vivi; 
À qual, tomando um pouco sobre si, 
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados
De meus doces terrores, 
De meus suaves males, e furores, 
Por ela padecidos, e buscados, 
E (posto que já tarde) piedosa, 
Um pouco lhe pesasse, 
E lá entre si por dura se julgasse. 
.
Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica; 
Com isto afagaria o sofrimento. 
Ah Senhora! ah Senhora! E que tão rica 
Estais, que cá tão longe de alegria
Me sustentais com doce fingimento! 
Logo que vos figura o pensamento, 
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte; 
E logo se me juntam esperanças
Com que a fronte, tornada mais serena, 
Torna os tormentos graves
Em saudades brandas, e suaves. 
.
Aqui com elas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respiram
Da parte donde estais, por vós, Senhora; 
As aves que ali voam, se vos viram, 
Que felizes, que estáveis praticando; 
Onde, como, com quem, que dia, a que hora
Ali a vida cansada se melhora, 
Toma espíritos novos, com que vença
A fortuna, e trabalho, 
Só por tornar a ver-vos, 
Só por ir a servir-vos, e querer-vos;
Dize-me o tempo que a tudo dará talho;
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca sofreu, sem tento
Me abre as chagas de novo ao sofrimento..."
.
"Assim vivo; e se alguém te perguntasse
Canção, porque não mouro
Podes-lhe responder, que porque mouro."
.
                  Como se pode ver por esses últimos versos, o poeta esperava ainda. E D.Catarina estava à morte!
                  Nos fins de 1556 já não existia. 
                  A notícia da sua morte não chegou a Camões, segundo parece, senão por ocasião da sua volta a Macau, onde tinha ido desempenhar uma missão de que o tinha encarregado o governador das Índias, Francisco barreto. Pouco depois de chegar a Goa foi metido na cadeia, como se sabe; e foi durante o seu cativeiro que ele chorou a morte de D. Catarina. Num soneto imitado de Petrarca compara-se a uma ave privada da sua companheira, que ele tinha visto através das grades da gaiola. Um outro soneto, em que se dirige à alma bem-aventurada daquela a quem amava, é um dos trechos mais célebres da poesia portuguesa: 
"Alma minha gentil, que te partiste 
Tão cedo desta vida descontente, 
Repousa lá no Céu eternamente, 
E viva eu cá na terra sempre triste. 
.
Se lá no assento Etéreo, onde subiste, 
Memória desta vida se consente, 
Não te esqueças daquele amor ardente, 
Que já nos olhos meus tão puro viste. 
.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
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Roga a Deus, que teus anos encurtou, 
Que tão cedo de cá me leve a ver-te, 
Quão cedo de meus olhos te levou."

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                  Pouca coisa é a história deste amor, quanto aos fatos e aos detalhes preciosos; algumas entrevistas durante as belas noites de verão, alguns passeios furtivos no campo de Lisboa, a oferta de um retrato de Camões que esteve durante muitos anos no seio de D. Catarina, e a remessa de algumas poesias que lhe chegavam com grande perigo e bastante dificuldade, ultrapassando os mares para irem cair como pombas brancas, no palácio. Mas a grande alma apaixonada de Camões, a alma amante e sofredora da nobre Catarina, unidas num duo impressionante; mas essas almas de ternura inquieta, de amor palpitante, cheio de angústia, sob a ameaça sempre suspensa do raio, que misterioso e divino poema!... 
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BREVE BIOGRAFIA de Máximo Formont. 
                 Máximo Forment foi um literato francês que nasceu em Bar-sur-Aube em 1863. Estreou-se por um livro de versos, Refuges, 1890. Depois escreveu: Triomphe de la rose, 1896; Cantique de la rose, 1903; em verso; Voluptés; L'Inassouvie; Courtisane; Perversites; La Faute amoureuse; L'amour passe; L'Enervée; La Grande Amoureuse; Le Pêché de la mort; 1905; Le Baiser rouge e Sacrifiée, 1906; romances e novelas. Escreveu muito também sobre coisas portuguesas, entre outros livros: Les Inspiratrices, Estudo sobre Vitória Colonna, a inspiradora de Miguel ângelo, Beatriz do Dante Alighieri e Natércia de Camões, e um trabalho sobre história da literatura portuguesa. 
                  Nicéas Romeo Zanchett